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segunda-feira, fevereiro 16, 2015

COMO SÃO CALCULADAS AS PASSAGENS DE ÔNIBUS?


As manifestações populares que tomaram as principais cidades brasileiras no mês de junho/203 tiveram como estopim os aumentos das tarifas do transporte público urbano. Rapidamente, porém, divulgou-se o mote de que os protestos não eram por causa dos vinte centavos, valor da majoração na capital paulista. Desde então, discute-se na mídia e nas redes sociais tarifa zero, FINANCIAMENTO de campanha e até eventuais “criatividades” na contabilidade das empresas de ônibus, mas pouco se falou sobre a origem dos vinte centavos da discórdia.
Como é calculado o valor das tarifas de ônibus no Brasil, afinal? Boa parte das prefeituras e dos governos estaduais fixa a tarifa tomando como base um documento intitulado “Cálculo de Tarifas de Ônibus Urbanos”, produzido pela Empresa Brasileira de Planejamento de Transportes. Não confundam com a EPL, criada em dezembro de 2012; a autoria da planilha é do GEIPOT, que foi criado em 1965 e entrou em liquidação em 2002 após ter sido, por várias décadas, a principal referência em planejamento de transportes no Brasil.

A “planilha do GEIPOT”, como ela é conhecida entre os profissionais da área, foi revista pela última vez em 1996. Portanto, quando a última versão saiu, a maioria dos manifestantes ainda nem tinha aprendido a fazer uma subtração simples para calcular o troco da passagem. Os valores, é claro, são sempre atualizados, mas e quanto às premissas que norteiam a aplicação do documento? Elas continuam válidas e presentes?
Sem entrar em detalhes muito técnicos, a planilha busca calcular o custo incorrido pelas empresas de ônibus na operação, com base em estimativas de despesas como compra de veículos, pneus, óleo diesel e salários dos trabalhadores. Adicionalmente ao custo, é prevista uma remuneração a uma taxa de retorno fixada pelo poder concedente, com base no capital investido. O valor total é dividido pelo número
de pessoas que usam o serviço. O resultado final de toda a matemática é a chamada “tarifa de equilíbrio”, que é o preço que permite a cobertura integral dos custos incorridos na prestação dos serviços, devidamente rateados entre os usuários pagantes, desconsideradas as gratuidades.
Essa tarifa de equilíbrio é, em geral, usada pelo poder público como base nas negociações com os empresários sobre a tarifa real do sistema, que pode ser maior ou menor. As premissas que estão embutidas nesse método devem ser postas mais claramente para o debate.
A primeira premissa é a de que, por meio de informações técnicas da planilha, o poder público tem condições de conhecer o custo de uma empresa de ônibus com um grau de precisão razoável. Isso não é verdade. A assimetria de informações entre os operadores do sistema e o poder concedente é brutal. Durante os anos 80, era comum que as administrações municipais e estaduais tivessem suas próprias empresas públicas de transporte, que, ainda que ineficientes, poderiam então servir como parâmetro de comparação com as informações fornecidas pelos operadores privados, além de capacitar servidores públicos a analisar tais números. Hoje, isso é exceção. O poder concedente recebe os números dos operadores, mas tem poucas condições de analisar sua razoabilidade ou o quanto os parâmetros refletem uma operação eficiente. Em alguns casos, sequer há capacidade operacional de fiscalizar sua veracidade. É fácil perceber que, nesse caso, o operador privado tem muito pouco a ganhar cooperando com o poder público. Aliás, como é politicamente interessante, da parte governamental, tentar negociar uma tarifa menor do que a tarifa de equilíbrio da planilha, mesmo um operador que não buscasse lucros extraordinários (acima da taxa de retorno estabelecida) teria incentivo para apresentar custos artificialmente inflados.
A segunda premissa é a de que se deve procurar garantir a cobertura de todos os custos e a remuneração de todos os INVESTIMENTOS do empresário, reduzindo assim o risco do negócio. Nessa situação, muito embora os parâmetros de cálculo de custos possam ser ajustados caso a caso, a variável que mais influencia o lucro do empresário é o capital investido, e não o grau de eficiência da operação. Ora, se o operador recebe uma taxa de retorno sem risco, normalmente bastante atraente, que é proporcional ao capital investido no negócio, que incentivo teria para buscar eficiência e redução de custos operacionais? Sem dúvida, melhor negócio é fazer cada vez mais investimentos, mesmo que pouco contribuam para a produtividade e a qualidade do serviço. Para uma empresa remunerada pela planilha do GEIPOT, mais valem dois ônibus parados no congestionamento do que um ônibus em corredor expresso. Afinal, a planilha remunera o dobro de capital no primeiro caso, além de garantir a cobertura dos custos excedentes com combustível e salários. O risco principal do empresário é o grau de aderência do poder público à planilha tarifária, e não o nível de retorno dos seus investimentos.
A terceira ideia por trás da tarifa de equilíbrio, finalmente, é de que a demanda por transporte público urbano é inelástica em relação ao preço. Ou seja, supõe-se que o usuário do transporte público é majoritariamente “cativo” ou “dependente”, o que o torna pouco sensível ao preço cobrado pelo serviço. O fato de que parte das passagens é custeada não pelos usuários, mas pelos empregadores formais, por meio do vale-transporte, serve como argumento para justificar essa falsa ideia.
De fato, existem dois tipos de elasticidade: a de curto prazo e a de longo prazo, sendo que a segunda é sempre maior. O usuário do transporte público pode não mudar imediatamente seu padrão de viagens com um aumento de vinte centavos, mas, ao longo do tempo, conforme os aumentos se sucedem, ele considerará modos substitutos. Com a queda dos juros ao consumidor, é cada vez mais atraente para a nova classe média a compra de um automóvel popular e mesmo as classes de menor poder aquisitivo conseguem, com os preços atuais do transporte público nas grandes cidades, substituí-lo por uma motocicleta. Quando nada disso é possível, o cidadão caminha – às vezes percursos bastante longos – ou deixa de realizar a atividade para a qual a viagem era necessária.
Os efeitos da substituição pelo transporte individual por conta da elasticidade de longo prazo são nefastos. Mais automóveis causam mais congestionamentos que, quase sempre, atrasam também a viagem dos usuários que permanecem nos ônibus. Mais motos causam mais acidentes, cujos custos em perda de produtividade e para o Sistema Único de Saúde são arcados por toda a sociedade. Ambos poluem mais e ocupam mais espaço viário por passageiro transportado do que os ônibus. E, de acordo com a metodologia empregada na planilha do GEIPOT, menos passageiros pagantes implicam automaticamente aumento da tarifa por passageiro para cobrir os custos do sistema, o que aumenta o incentivo para a troca modal, retroalimentando o ciclo.
Portanto, a planilha do GEIPOT é útil para se ter uma ideia aproximada dos custos do sistema, mas não deve servir como único ou principal parâmetro para fixação da tarifa, já que daí derivam incentivos indesejáveis para os operadores e para os usuários. Se quisermos um transporte público mais barato e eficiente do que o atual, temos que avançar no modelo de regulação desse mercado, incluindo-se aí os incentivos aos operadores e a determinação das tarifas.
A primeira medida deve ser reduzir as assimetrias de informação no mercado. Se, pelo lado do custo, isso não é possível, o poder público deve tomar posse pelo menos das informações de oferta, demanda e receita. Hoje, a tecnologia de bilhetagem eletrônica permite que o poder público controle o caixa dos sistemas de ônibus, e que a população fiscalize, em tempo real, as informações das catracas. Infelizmente, não é o que se vê. Pelo contrário, tais informações são quase sempre de propriedade das empresas de ônibus ou de seus sindicatos patronais, são raramente repassadas ao poder público e nunca chegam à população em geral. Mesmo nos sistemas integrados, na maioria das vezes, a câmara de compensação que permite o repasse dos valores cobrados na entrada do sistema para os operadores dos veículos seguintes não tem participação efetiva do poder concedente.
Uma vez de posse das informações de mercado, o poder público terá condições de melhorar a regulação e aumentar a competição, o que levará a maior eficiência na prestação do serviço de transporte urbano. Aqui, é importante notar que há, nesse mercado, dois tipos de competição: a que se dá no mercado, ou seja, na operação, com a superposição de linhas; e aquela pelo mercado, isto é, pelo direito de operar determinadas linhas do sistema. Sem dúvida, o segundo tipo tem ganhos potenciais muito maiores.
Para auferir esses ganhos, o transporte público deve ser licitado (em muitas cidades, a operação ainda se dá a título precário), sendo importante que as concessões e permissões tenham prazos curtos, em torno de cinco anos, renováveis por igual período caso a prestação do serviço esteja satisfatória. O poder público deve estabelecer os critérios de remuneração pelo serviço por meio do processo licitatório, e não mais em negociações a cada aumento das tarifas, afastando, na medida do possível, o risco político. Assim, o poder público terá condições de, a cada certame, selecionar o prestador mais eficiente e repassar o aumento de produtividade aos usuários; o operador, por sua vez, deverá se preocupar com o aprimoramento do serviço, em vez de se concentrar em aumentar sua própria influência política junto aos responsáveis pela determinação da tarifa.
Havia, até pouco tempo, a ideia de que o ônibus era um custo afundado (irrecuperável) e, por isso, o empresário precisaria de muitos anos para amortizar seus INVESTIMENTOS. O próprio fato de que a maioria das capitais estabelece sete a dez anos como idade máxima dos ônibus já comprova a falácia do argumento e a impropriedade de se fazer licitações com prazos de vinte ou trinta anos que não estejam associadas à construção concomitante de infraestruturas.
Porém, sem informações públicas de demanda e receita, o operador já estabelecido terá sempre uma enorme vantagem no certame, e as licitações não representarão mais do que o cumprimento burocrático da lei. Aliás, elas podem até colocar em risco a continuidade do serviço, já que uma empresa pode fazer hipóteses excessivamente otimistas sobre a demanda e apresentar um preço que se revelará, posteriormente, impraticável.
A providência final seria considerar a existência de custos fixos e variáveis, tanto para a empresa de ônibus, quanto para o usuário que tem outros meios de transporte à disposição. A tarifa calculada segundo a metodologia do GEIPOT embute no mesmo preço tanto os custos fixos quanto os custos variáveis da operação do serviço. Em um cenário em que o cidadão tenha que optar entre dois meios de transporte – ônibus e motocicleta, digamos –, o custo fixo do transporte individual é um gasto já realizado pelo cidadão, enquanto a tarifa do transporte público é paga apenas com o uso do sistema. O ideal seria que a tarifa cobrada do usuário do transporte coletivo arcasse apenas com a parcela relativa aos custos variáveis (ou o custo marginal de utilização). Isso evitaria que, ao tomar a decisão do modo de viagem, o cidadão seja levado a comparar maçãs com laranjas, isto é, confrontar o custo variável do transporte individual com o custo total do transporte coletivo.
Como financiar o custo fixo do transporte público sem depender da tarifa é uma discussão bastante complexa, mas que acaba recaindo sobre a escolha entre quatro grupos: a sociedade como um todo, por meio de um aumento geral de impostos; os usuários de automóveis, com cobrança de estacionamento ou pedágio urbano; os proprietários de imóveis urbanos, em especial os localizados próximos às infraestruturas de transporte; e os empregadores, como já ocorre com o vale-transporte.
Os estados e municípios deveriam aproveitar o clamor das ruas para assumir o caixa dos sistemas de ônibus, realizar licitações dos serviços o mais rápido possível e, com a melhoria de qualidade advinda dessas providências, reabrir a discussão sobre o FINANCIAMENTO do transporte público no Brasil. Percorrer esse caminho pela contramão – reduzindo tarifas no curto prazo sem, contudo, discutir um modelo sustentável no longo prazo – é apenas jogar dinheiro público no ralo da ineficiência, quando não do desvio por falta de fiscalização.
Precisamos com urgência avançar duas décadas na discussão acerca da regulação do mercado de ônibus. E a forma de fazer isso é redefinir a repartição de riscos, melhorando a estrutura de incentivos. Nesse sentido, é mister retirar o preço do serviço do âmbito de negociações políticas, que, ainda por cima, acabam sendo pautadas por informações fornecidas pelas próprias empresas interessadas no aumento. O preço eficiente deve ser revelado pelas forças de mercado a cada licitação competitiva, com regras claras e estáveis durante o contrato. O Governo Federal poderia assumir a tarefa de propor um menu de modelos para precificação e concessão de transporte por ônibus, para que estados e prefeituras escolhessem o de sua preferência. Assim, mesmo as prefeituras com menor capacitação técnica poderiam se beneficiar de um sistema mais eficiente e justo
Rodrigo Ribeiro Novaes
Consultor Legislativo do Senado na área de Transportes.
Link de Planilha de Cálculo: 
http://www.geipot.gov.br/estudos_realizados/cartilha01/Tarifa_p%C3%A1gina4/Tarifa_p%C3%A1gina4_0.htm

sábado, fevereiro 07, 2015

O idioma como instrumento de dominação

Quando um dos inúmeros tentáculos da discriminação assume aforma de preconceito lingüístico contra a língua portuguesa no Brasil

Por: Wagner Williams

Muito se debate sobre assuntos ambientais, genéticos e econômicos ultimamente. Temas sociológicos reincidentes como o homossexualismo, o racismo, a discriminação física, o tráfico, etc., tornaram-se uma espécie de clichê político para candidatos, lugar-comum para cidadãos, porém com espaço garantido para novas (e velhas) discussões. Entretanto, exclusive o cientista da área, quase nunca se reserva espaço para refletir sobre a língua, examiná-la, discuti-la, expor os problemas que a envolve e que atingem seus falantes, pois que ela ainda é considerada por muita gente uma entidade dogmática não merecedora de investigações científicas, de atenção política e de debate por parte da população.

Uma das capacidades sem a qual o homem seria mais animal é a linguagem, uma vez que ela funciona como elemento de interação entre o indivíduo e a sociedade em que ele atua. A língua é o produto social dessa capacidade, sendo portanto, pela língua, que indivíduo e sociedade se determinam mutuamente.
Ao contrário do que muitos acham, uma língua não seencerra nas regras gramaticais, bem como não é questão de "certo e errado", nem objeto para juízos de "melhor e pior, bela e feia, fácil e difícil". Uma língua é uma questão de organização da realidade, envolve conhecimento próprio de vida imposto pela nossa mente aos elementos que compõem o mundo, ou seja, entender uma língua é, em certo grau, entender o pensamento de seus falantes.
A ciência que estuda os fenômenos da linguagem é a Lingüística, nascida na Europa do século XIX, desenvolvida na América do Norte no século XX e muito produtiva no Brasil hoje. Do ponto de vista dela, um dialeto (variante regional do mesmo idioma) é melhor tanto quanto o outro. Do ponto de vista social, um dialeto é melhor do que o outro. Essa idéia de superioridade dialetal impregnou-se na língua portuguesa usada no Brasil, dispersou-se através da tradição escolar, dos meios de comunicação, e atingiu os falantes do idioma que popularizaram essa idéia. Conseguintemente a escolha de uma variação como superior criou todo um aparato de dominação ideológica, preconceitos e mitos acerca do português e de seus usuários, sobretudo acerca dos nordestinos. Com respaldo científico da Lingüística, discorrer e esclarecer algumas dessas distorções constitui a matéria deste ensaio.
VARIAÇÕES PRIVILEGIADAS
"Todas as línguas variam, isto é, não existe sociedade ou comunidade na qual todos falem da mesma forma. A variedade lingüística é o reflexo da variedade social, e como em todas as sociedades existe alguma diferença de status ou papel, essas diferenças se refletem na linguagem" (Geraldi & Possenti 2006:35). Estreitamente ligada ao corpo social, a língua expressa as diferenciações da sociedade - momento histórico, sua abertura econômica, seus acessos cultural e científico, contato estrangeiro; e de seus habitantes - posição geográfica, etnia, faixa-etária, grau de instrução, classe econômica, papel social, religiosidade. A influência dessas diferenciações numa língua resulta na variedade lingüística.
A linguagem técnica do trabalho, o linguajar regional, o dialeto das elites, a fala popular, as gírias são exemplos de variedade lingüística. Para tentar uniformizar as variações, a fim de que todos os falantes da língua nativa leiam, escrevam, pronunciem e ouçam em comum entendimento as mesmas informações, a comunidade escolhe como padrão uma dentre as variedades. Em seguida, inspirada por noções estéticas e morais, prestigia a variação padrão como modelo ideal a imitar, atribuindo-lhe juízos de valor como "exemplar", "correta" e "bela".
No Brasil recém-colonizado se adotou a variedade prestigiada da língua portuguesa corrente na corte de Lisboa. A produção do Renascimento era a grande novidade daquele século, e Portugal a conheceu quando Sá de Miranda retornou da Itália em 1527, trazendo as inovações classicistas. O formalismo da prosa e da poesia, o silogismo, o mote glosado como idéia principal do texto, o uso do verso decassílabo, a poesia palaciana, o teatro popular, a escrita das investigações científicas influenciaram o vernáculo lusitano, ascendendo-o ao clássico. Logo, no Brasil colônia, eventualmente, a variedade usada por ícones portugueses como Fernão Lopes (1378-1459), Garcia Resende (1470-1536), Gil Vicente (1465-1536) e Luís Vaz de Camões (1524-1580) passou a ser ensinada e oficializada. Legitimada como "norma padrão", a variedade das elites foi sistematizada, convertendo-se no que conhecemos como manual de gramática.
Mais tarde, do século XVIII ao XIX, a cidade do Rio de Janeiro - então capital do Brasil - era o centro da plêiade literária, sendo ainda contemplada com a fundação da Academia Brasileira de Letras (1897). Com o advento do Modernismo (1922), a cidade de São Paulo ganha cenário, tornando-se a segunda capital cultural brasileira, além de ser o maior pólo do comércio do café. Não é à toa, portanto, que ainda hoje os dialetos carioca e paulista são os prestigiados dentre os das cinco regiões do País.

O MANUAL DE GRAMÁTICA DA LÍNGUA PORTUGUESA NÃO É A LÍNGUA PORTUGUESA
Como visto, o que chamamos de "gramática da língua portuguesa" é, na verdade, apenas uma variedade das muitas que circundam o nosso idioma. Uma fração específica da língua não é toda a língua.
Não obstante, uma gama de autores gramáticos mais algumas personalidades ignoram tal fato. Uma cultura pregada por eles - a de que só a gramática é a única e verdadeira Língua Portuguesa a ser falada - tem marginalizado, taxado e repreendido toda a sorte de falares, conforme aponta Geraldi: "Fatos históricos (econômicos e políticos) determinam a 'eleição' de uma forma como a língua portuguesa. As demais formas de falar, que não correspondem à forma eleita, são todas qualificadas como 'errôneas', 'deselegantes', 'inadequadas para a ocasião." Vejam-se exemplos dessa discriminação: (a) "É português estropiado que no Brasil se fala, língua de gíria, língua sem peias sintáticas, língua sem flexão arbitrária, língua do 'deixo vê', do 'mande ele', do 'já te disse que você', do 'não lhe conheço', do 'fiz ele estudar', do 'vi os meninos saírem'" (Napoleão Mendes de Almeida). (b) "Os jornalistas usam: o aumento do funcionalismo público, o aumento da gasolina, o aumento da carne. "É o mais puro aumento da incompetência" (Luiz Antonio Saconni). (c) "O sujeito que usa um termo em inglês no lugar do equivalente em português é, na minha opinião, um idiota" (Pasquale Cipro Neto).
É nessa concepção que Língua Portuguesa não é toda manifestação oral e escrita de um povo que a usa; que cantigas-de-roda, o folclore, as danças típicas, o cordel não consitem de uma variação do português legítimo, mas de um português "exótico", "cheios de erros", porque a variação válida é somente a falada/escrita pelas camadas dominantes da sociedade, a suposta norma culta ou padrão. É pois, no centro de tal entendimento que se gera a exclusão pela e na linguagem, uma vez que "essa variação não é privilégio de tal concepção, mas o é de forma especial: a variação é vista como desvio, deturpação (...). Quem fala diferente fala errado" (Geraldi & Possenti 2006:49).
Conivente com essa postura discriminante, o ensino escolar brasileiro reproduziu a cultura do preconceito lingüístico até fins da década passada , fato que contribuiu com a propagação desse preconceito pregado até pelos não falantes da variedade das elites. Britto e D'Angelis, citado por Bagno (2006:30), aponta para a desmistificação dos argumentos de ensino da norma culta: "A insistência no ensino da gramática articula-se com três noções que não se confirmam na análise das práticas sociais: a de que a ação normativa tem por finalidade evitar a corrupção e a degradação da língua nacional; a de que a chamada norma culta é própria das relações formais, de modo que seu não domínio implica na exclusão do sujeito dessas situações; e de que seu conhecimento garante o acesso a determinadas expressões superiores de cultura e informação".
Como efeito disso tudo, o fracasso do ensino gramatical, a rejeição pelas aulas de português, a insegurança das pessoas para discursar, redigir e interpretar, jargões do tipo "brasileiro não sabe português", "português é chato", "os pobres e iletrados falam errado"..., porque a variedade falada predominantemente no Brasil, que é a popular (coloquial), colide com a ensinada e minoritária, a culta. Os 180 milhões de brasileiros quase não falam a mesma variedade que lêem e escrevem. A fala popular é, de fato, a língua materna do brasileiro, a que espontaneamente se fala, como explica Perini: "(...) o português (que aparece nos textos escritos) não é a nossa língua materna. A língua que aprendemos com os nossos pais, irmãos e avós é a mesma que falamos, mas não é a que escrevemos".
Portanto, o manual de gramática não é a Língua Portuguesa e sim um substrato dela. O que se considera "erro de português", é, factivelmente, uma não correspondência à variedade das elites; nunca um erro do idioma. O que o ensino gramatical deve esclarecer é: "(...) que essa variedade, a mais prestigiada de todas, possui força em razão de dois fatores: pelo fato de ser utilizada pelas pessoas mais influentes, donde se deduz que seu valor advém não de si mesma, mas de seus falantes; e por ter merecido, ao longo dos tempos, a atenção dos gramáticos, dos dicionaristas e dos escribas em geral" (Geraldi & Possenti 2006:51).
GRAMÁTICA INTERNA DO PORTUGUÊS
Qualquer nativo falante do idioma possui um conhecimento implícito-intuitivo desse idioma. O saber implícito é a gramática interna da língua, que consiste em reconhecer uma lógica que conduz a ordem do enunciado, em elaborar sentenças compreensíveis ao ouvinte, em alternar seqüências de ordem fonológica, morfológica, sintática e semântica sem auxílio de um saber técnico.
Mário Perini (1997:14 e 15) mostrou que, na fala, podemos intercalar a um substantivo ou a um pronome uma oração adjetiva como "procurei Marília, que não me recebeu" (subst.: Marília; or.adj.: que não me recebeu). O falante pode atribuir valor substantivo a palavras como os pronomes (ex: ele, nós, você) e intercalá-las com a oração adjetiva que. Mas se o falante perceber uma mudança naqueles pronomes (como a contração da preposição de+ele=dele ou as formas oblíquas lo, a, lhe), "o acréscimo de uma oração adjetiva dá resultados bem menos aceitáveis": Fui procurá-la, que não me recebeu; *fui à sua casa, que não me recebeu. Exemplificou a lógica do objeto direto no enunciado: "Mas há uma restrição (...): nunca se pode usar uma frase na qual o objeto direto exprima um subconjunto do sujeito": *Nós me vimos na TV (nós: sujeito; me: objeto direto). Um ouvinte analfabeto ou uma criança entre 3 e 4 anos ao ouvir "a casa de Ana é alta" consegue, intuitivamente, distinguir o sujeito (casa), do adjetivo (alta) e do predicado (Ana), ligando o sujeito (a casa) ao seu predicativo (de Ana é alta), razão pela qual não confunde os termos, se entendesse Ana é que é alta. Marcos Bagno (1999:125) igualmente expôs "erros que nenhum falante nativo da língua comete": * "Aquela garoto me xingou", * "eu nos vimos ontem na escola", * "Júlia chegou semana que vem", * "não duvido que ele não queira não vir aqui", * "que o livro que a moça que Luís que trabalha comigo me apresentou escreveu é bom não nego". Por isso, Bagno (1999:124) atesta que todo falante é: "(...) capaz de discernir intuitivamente a gramaticalidade ou a agramaticalidade de um enunciado, isto é, se um enunciado obedece ou não às regras de funcionamento da língua".
No entanto, aqueles pregadores da norma padrão não mencionam nem investigam tais fenômenos. Como dependem da noção de erro (como instrumento de distinção social), recriminam todo enunciado que não se submeta às normas da gramática normativa, reforçando assim a crença da dificuldade de "aprender português" para que, no fundo, garantam-se as lucrativas saídas comerciais, as grandes tiragens de manuais, o status de "intelectual" e a distância entre "eruditos" e "leigos" em favor da "dominação por parte dos letrados sobre os iletrados" (Bagno 1999:133). É o que demonstra esse autor ao dizer que "a idéia de que 'português é muito difícil', serve como mais um dos instrumentos de manutenção do status quo das classes sociais privilegiadas".
Eles confundem, propositadamente, não-correspondência à variedade elitista com "erro de português", variações lingüísticas com "infrações gramaticais", fala com ortografia oficial. Ignoram o que consideram "erro" ser indício de evoluções no interior dos mecanismos do idioma provocadas pela atividade da gramática interna dos falantes.
PRECONCEITO CONTRA O DIALETO NORDESTINO
Diz-se no Brasil, o nordestino figura entre as melhores piadas (digam-se os concursos de piadas na TV). A denominação "caipira" é a caricatura nacional de quem reside no Nordeste e sinônimo de humor. Veja-se o que escreveu Dad Squarisi em artigo no Diário de Pernambuco: "(...) Clareou este mundo cheinho de jecas-tatus. (...) Caipiras, caipiras e mais caipiras. Falamos o caipirês. Sem nenhum compromisso com a gramática portuguesa" . E Luiz Antonio Sacconi no livro Não Erre Mais!: "Na Bahia, porém, na sempre formidável Bahia, as pessoas se acordam. O mais interessante é que se acordam e vão direto à praia".
Nas telenovelas os personagens nordestinos são interpretados num trejeito estereotipado. Suas falas são "engraçadas" e "inferiores" às dos personagens não-nordestinos para divertirem a audiência. Tal retrato é reflexo do preconceito contra o dialeto nordestino, considerado por alguns um sotaque "gozado" de palavras esquisitas e feias.
Em contraposição a esse preconceito, já foi dito aqui: em termos científicos não há dialeto melhor ou pior, bonito e feio, mas diferente. Cada dialeto possui elementos peculiares à realidade regional, funcionando, no entanto, com os mesmos mecanismos idiomáticos presentes em todas as variações da língua materna. Para demonstrar essas evidências, vejamos primeiramente um caso muito conhecido do sotaque nordestino. Nesse dialeto, ao dizer eita, deitar, oito, oiteiro, oitenta, muito, noite, o falante pronuncia a consoante [t] como /ts/ (semelhante a tcheco) quando a palavra tem um [i] como encontro vocálico antes do [t]. Se escrevêssemos isso teríamos: "Me deixe enfeitchar isso". Esse caso chama-se palatalização, visto por alguns como algo "feio, ridículo". Porém ele está também presente no dialeto sudestino ao dizer tia, instinto, tinha, etc., só que com o [i] palatalizador depois do [t] com ou sem encontro vocálico. Se assim escrevêssemos teríamos: "Oi tchitchia (titia)!"; e no entanto se considera "bonito, normal" ao ouvir. Mas o fenômeno é o mesmo nos dois sotaques, invertendo apenas a posição do [i] da palatalização. Na verdade o que se foca nesse juízo depreciativo que se faz do dialeto do Nordeste é a pessoa que fala nessa região geográfica essa variação do português, já que se associa ao Nordeste uma área pobre e atrasada - então seus habitantes com sua linguagem serão vistos da mesma maneira.
A seguir, para reforçar o argumento de que os mesmos mecanismos lingüísticos atuam nas variações do português a fim de que não se veja preconceitos, analisaremos duas interjeições, uma conjunção e um substantivo típicos do Nordeste.
Interjeições
O vixe é tido como estranho pelos sulistas; mas não há nada de estranho e sim natural. Vixe é uma variante de virgem, no que se diz - "vige Maria!" (Virgem Maria) - que falantes com dificuldade de pronúncia do /r/ o suprimiram com a nasal /m/, passando a vige. Este [g] antes de vogais /e/ e /i/ em termos fonéticos obtém semelhante traço sonoro do [x] - chiado - (ex: gengibre) no qual se transformou, passando a vixe. Outro caso visto com estranheza pelas outras regiões é o uso do ôxi, como em "ôxi, não entendi!". Ora, o "ôxi" nordestino expressa a mesma coisa que o "ué", o "puxa" e o "putz" dessas outras regiões: dúvida, espanto, admiração. São, portanto, interjeições. Vocábulos como oxum (antigo rio africano), oxossi (entidade da umbanda), oxalá (tomara) têm o mesmo radical de oxente (OX) - todas muito usadas no antigo Nordeste brasileiro pelos escravos africanos. Logo, por influência do som do radical [OX] oxente se reduziu para ôxi.
Conjunção
Um outro caso tido como esquisito pelos dialetos de prestígio é o uso nordestino do "apois", como em: "Apois pronto! Vai ficar como está". Neste caso se vê dois aspectos - um semântico e outro morfológico. No semântico (que diz respeito ao sentido da palavra), o apois pode ser entendido como um efeito de conclusão ou uma conjunção coordenativa conclusiva feito o "então". Por exemplo: "Então pronto! Vai ficar como está"; "apois (então) faça isso...; apois (então) vá embora"; "apois aconteceu o que eu tinha dito". Isso porque "então" quando conjunção significa logo, portanto e pois (este embutido no apois). Quando "então" é advérbio de tempo, a gramática interna do falante não entende proposição ou inferência para concluir uma idéia, que é característica das conjunções. Por tal razão não se ouve: * "Até apois (então) chovia", * "desde apois (então) não fumo", * "não me doía, mas que apois (então) me dói". Enfim, a gramática do falante seleciona apois como se fosse "então", porque o entende como o "pois" das conjunções conclusivas. Já no aspecto morfológico (que diz respeito à estrutura da palavra) se verifica a junção da interjeição ah de admiração com a conjunção pois: ah+pois = apois (o h de ah é mera ortografia, suprimindo-se), servindo de prótese à pronúncia e suporte para o elemento pois da conclusão da idéia - o que equivaleria como: "ah, pois aquilo aconteceu anteontem sim!", "ah, pois duvido que você se atreva". É um fenômeno similar ao que ocorre na expressão idiomática de interrogação aé?, que equivale a ah, é mesmo? (pois o ah tem seu h suprimido, fundindo-se com o é: ah+é = aé). O a de apois parece estar funcionando também como o prefixo latino a (no sentido de "direção", "aproximação", como em afluir e abeirar, diferente do a grego de negação, como em atípico e amoral) com a conjunção pois: a+pois = apois. Nesse sentido, talvez, o uso de "adepois" (a+depois) se justifique pela semelhança de som entre pois e depois e por ambas serem conjunções.
Substantivos
As expressões mãinha e painho são consideradas engraçadas por muitos não-nordestinos. Acham "invenção da gíria matuta", já que o "certo" é mamãezinha e papaizinho. Não é bem isso. Esses diminutivos são resultados do processamento morfológico na gramática interna do português freqüentes em todas as regiões brasileiras. Trata-se de substantivos no diminutivo sintético (como em casinha) com efeito afetivo e não de medida ("mamãezinha" não é entendida como baixa, mas querida). Decompondo, ma é prefixo (morfema antes do radical); mãe é o radical (parte invariável com significado); [z] é consoante de ligação (elemento que liga morfemas para auxiliar a pronúncia, como em chá+eira = *chaeira+l = chaleira); inh é sufixo (morfema depois do radical) indicador de diminutivo; [a] é vogal temática (que acompanha um nome) e não desinência de gênero feminino, posto que o radical mãe já é o feminino heterônimo de pai. Têm-se então ma+mãe+z+inh+a. O prefixo ma é eliminado (mãezinha) juntamente com a consoante de ligação [z] - haja vista não comprometer a pronúncia (mãe inha). Adiante, há crase (fusão de vogais iguais ou com som semelhante) entre o som de /e/ em mãe e o /i/ de inha (mãe inha=mãinha). O mesmo ocorre com papaizinho: pa+pai+z+inh+o=#paizinho=pai inho=pai inho=painho. Tal processo se sucede em função da economia da fala (papaizinho - mais longo/ painho - mais breve) usado por todos os brasileiros em diversas palavras: cartinha (cartazinha), amiguinho (amigozinho), namoradinha (namoradazinha), etc. Como se vê, nada disso é "invenção da gíria matuta", segundo o preconceito lingüístico.
CONCLUSÃO
É fato a existência do preconceito contra a linguagem, até porque num país permeado por injustiças, desigualdades, discriminações e fundamentalismos, o idioma é só mais uma das vítimas dessas mazelas: "Numa sociedade como a brasileira - que, por sua dinâmica econômica e política, divide e individualiza as pessoas, isola-as em grupo, distribui a miséria entre a maioria e concentra os privilégios nas mãos de poucos -, a língua não poderia deixar de ser, entre outras coisas, também a expressão dessa mesma situação" (Geraldi & Almeida 2006:14). Nosso País é munido de legislação contra o preconceito - em suas diversas formas: religiosa, racial, ideológica; entretanto, não há nada escrito que combata quem discrimina alguém por seu sotaque ou particularidade de língua. Desfazer esse tipo de preconceito "só será possível quando houver uma transformação radical do tipo de sociedade em que estamos inseridos, que para existir, precisa da discriminação de tudo o que é diferente, da exclusão da maioria em benefício de uma pequena minoria, da existência de mecanismos de controle, dominação e marginalização" (Bagno 1999:140). É, pois, com todos esses conceitos, que o Brasil mostra estar muito longe de ser um país livre de preconceitos.
É poeta, articulista e acadêmico do curso de licenciatura em Letras da Universidade Federal de Alagoas.

sexta-feira, fevereiro 06, 2015

BRASIL E O FANTASMA DA TUTELA REDENTORA

"Eu prefiro ser a partir da indignação e da luta do povo brasileiro, uma Suécia, do que ser uma Cuba, com Ditadura. Não conheço historicamente um país moderno e educado com governos ditatoriais. A herança ibérica nos faz acreditar que devemos ser tutelados por um Estado super-poderoso e paternalista!"
Samuel Maia

E tudo surgiu com a morte de Dom Sebastião.
Uma das heranças da influência portuguesa no Brasil, com sua permanência no inconsciente coletivo, é o culto à personalidades e a visão que ser tutelado trás as garantias da paz, harmonia e controle dos hábitos/costumes. Uma das análises da História, nos remete a uma figura que tornou-se mítica com sua morte e que nas terras brasileiras de norte a sul fez surgir seitas e cultos a sua figura, sendo inclusive incorporado a casas de santo.
Rei de Portugal (1557-1578) nascido em Lisboa, que desapareceu na África gerando o sebastianismo, uma espécie de crença messiânica no seu retorno ao país. Neto e sucessor de D. João III, herdeiro do trono português, foi coroado rei aos três anos de idade e durante a menoridade ficou sob a tutela do cardeal D. Henrique, seu tio-avô paterno, e da avó, D. Catarina. Educado austeramente pelos jesuítas, logo demonstrou concentrar seus interesses nas artes da guerra e da conquista e ter como grande ambição a vitória sobre os muçulmanos para a glória do cristianismo. Assumindo o trono (1568) deu início ao projeto de criar um império português no norte da África e combater os mouros em nome de Cristo.

Comandou uma primeira expedição contra o Marrocos (1574) e numa segunda, à frente de um exército de mais de 15.000 homens, desembarcou novamente no litoral marroquino (1578). Seu projeto terminou tragicamente, pois na batalha de Alcácer-Quibir, no dia 4 de agosto, os portugueses foram esmagados pelas forças superiores do sultão Abd al-Malik e o rei desapareceu misteriosamente em combate, quando tinha apenas 24 anos de idade. Com seu sumiço e por não ter herdeiros, foi proclamado rei o velho cardeal D. Henrique, seu tio, que reinou dois anos. Esgotada a linha masculina da casa de Avis, recorreu-se à feminina, mediante várias manobras da nobreza e dos espanhóis.

Assim se facilitou a anexação de Portugal pela Espanha (1580), que deixaria o país sob o domínio espanhol, ao mesmo tempo que evoluía o mito sebastianista de que o jovem rei sobrevivera e voltaria para libertar seu povo. Essa crença sobreviveu por três séculos como símbolo do nacionalismo português. Subiu ao trono de Portugal (1581), contra a vontade popular, Filipe II, rei da Espanha, viúvo de uma filha de D. João III e o reino só readquiriu a independência sessenta anos depois (1640) quando teve início o reinado de D. João IV, fundador da dinastia de Bragança.
Muitos dos comportamentos atuais na política nacional podem ser entendidos a partir deste fato histórico, são as permanências da História que se dão no sentido simbólico, por isso, vemos a percepção de setores da sociedade brasileira que o que a salvará das mazelas será o "Salvador da Pátria", seja Ele na personificação de um ser-humano ou na "sacra-santa" instituição militar. O personagem Dom Sebastião é a expressão das duas a figura mítica e a figura militar.

quinta-feira, fevereiro 05, 2015

Incompetência de Governos gerou a crise da água

Ao liberar vazão acima da recomendada, Agência Nacional de Águas colaborou para que sistemas de armazenamento e distribuição do recurso chegassem ao colapso atual

É fato que o Sudeste enfrenta desde o ano passado a pior estiagem de sua história. É também unanimidade entre especialistas a responsabilidade do governo Alckmin na falta de planejamento e gestão para lidar com a crise em São Paulo. Entretanto, não é apenas o Estado o responsável pelo cenário desolador no qual se encontram reservatórios como o Cantareira (com apenas 5,2% de volume disponível, já contando com a segunda reserva técnica, nesta quinta-feira) e o Alto Tietê (11%), os principais da Região Metropolitana de São Paulo. Gerenciadora do uso do recurso do governo federal, a Agência Nacional de Águas (ANA) também tem culpa. 



O presidente da Sabesp, Jerson Kelman: ele admite que crise em 2015 será pior do que em 2014
David Shalom/iG São Paulo
O presidente da Sabesp, Jerson Kelman: ele admite que crise em 2015 será pior do que em 2014

A avaliação é do próprio Ministério Público Federal, além de unanimidade entre especialistas consultados pelo iG. "A esfera federal é tão corresponsável pela crise quanto a estadual. Por mais que os governos dos Estados de São Paulo e do Rio de Janeiro tenham se omitido, a política nacional de águas é coordenada pelo governo federal", diz Guilherme Dantas, professor do Grupo de Estudos do Setor Elétrico do Instituto de Economia da Universidade Federal do Rio de Janeiro. "A impressão que os governos estaduais passam é de que está tudo bem, mas temos rios interestaduais. Faltou uma diretriz federal tanto no que diz respeito à retirada quanto nas questões de obras e de política educacional."
Permissão para errarBoletins Mensais de Monitoramento do Sistema Cantareira que fazem parte de ação elaborada pelo MPF mostram que seguidamente a ANA autorizou vazões maiores do que as previstas em uma tabela conhecida como Curva de Aversão a Risco (CAR) – metodologia com o objetivo de prevenir ou reduzir o agravamento da crise hídrica, garantindo um volume mínimo a ser obedecido, por meio do estabelecimento de retirada de água de acordo com o recurso que entra com as chuvas.
"A ANA não tem como se eximir da responsabilidade. Ela é a responsável pelo gerenciamento. Quando, por exemplo, a Sabesp fez o pedido para usar a segunda cota do volume morto [em outubro], a empresa justificou o pedido apresentando cenários irreais. E a ANA foi conivente porque não exigiu da estatal a apresentação de um cenário realista, que não estivesse atrelado à certeza de chuvas", afirma o engenheiro e sanitarista José Roberto Kachel, que trabalhou na Sabesp por mais de 30 anos. "É uma omissão que a ação do MP destacou com todas as letras em sua ação. A ANA foi conivente com a Sabesp durante a crise."
Na página 78 do documento do MPF lê-se as palavras citadas pelo especialista, apontando que o Grupo Técnico de Assessoramento para Gestão do Sistema Cantareira (GTAG, conjunto de comitês criado para lidar com a baixa dos reservatórios, mas que acabou dissolvido devido a divergências entre ANA e DAEE) elaborou diferentes cenários de previsões para o volume de água.
Veja fotos da situação calamitosa de abastecimento de água em São Paulo:
Vaca caminha pela Represa Jacareí, no dia 29 de janeiro: normalmente ali teria água. Foto: Futura Press
Situação calamitosa da Represa Jacareí, parte do Sistema Cantareira, no dia 29 de janeiro. Foto: Futura Press
Carro no meio na Atibainha devido ao baixo nível da represa: cenário desolador. Foto: Futura Press
Pedalinhos inutilizados na Represa Atibainha, parte do Cantareira, em janeiro. Foto: Futura Press
Represa Atibainha, em janeiro de 2015. Foto: Futura Press
Lixo surge na Represa de Atibainha, em janeiro. Foto: Futura Press
Em protesto contra a falta de água, governador Geraldo Alckmin é ironizado por manifestantes (26/01/2015). Foto: AP Photo
Em São Paulo, moradores organizaram uma passeata contra a falta de água. Foto: AP Photo
Moradores protestam contra a falta de água em São Paulo (26/01/2015). Foto: AP Photo
Protesto 'Banho Coletivo na casa do Alckmin', na manhã desta segunda-feira (23), em frente ao Palácio dos Bandeirantes. Foto: Futura Press
Falta de água em São Paulo se agrava e motiva protestos . Foto: AP Photo
Represa do Jaguari, na cidade de Vargem, em setembro; veja mais imagens da situação dos reservatórios do Sistema Cantareira. Foto: Luiz Augusto Daidone/Prefeitura de Vargem
Represa do Jaguari, na cidade de Vargem, em foto de setembro. Foto: Luiz Augusto Daidone/Prefeitura de Vargem
Represa do Jaguari, na cidade de Vargem, em foto de setembro. Foto: Luiz Augusto Daidone/Prefeitura de Vargem
Obras do Sistema Cantareira no segundo volume morto. Foto: Futura Press
Obras do Sistema Cantareira no segundo volume morto. Foto: Futura Press
Obras do Sistema Cantareira no segundo volume morto. Foto: Futura Press
Obras do Sistema Cantareira no segundo volume morto. Foto: Futura Press
 Seca no reservatório do Rio Jacareí, em Joanópolis, São Paulo. Foto: Futura Press
 Seca no reservatório do Rio Jacareí, em Joanópolis, São Paulo. Foto: Futura Press
 Seca no reservatório do Rio Jacareí, em Joanópolis, São Paulo. Foto: Futura Press
 Seca no reservatório do Rio Jacareí, em Joanópolis, São Paulo. Foto: Futura Press
 Seca no reservatório do Rio Jacareí, em Joanópolis, São Paulo. Foto: Futura Press
 Seca no reservatório do Rio Jacareí, em Joanópolis, São Paulo. Foto: Futura Press
 Seca no reservatório do Rio Jacareí, em Joanópolis, São Paulo. Foto: Futura Press
Sistema Cantareira tem o menor nível em duas décadas. Foto: Patricia Stavis
Sistema Cantareira tem o menor nível em duas décadas. Foto: Patricia Stavis
Sistema Cantareira tem o menor nível em duas décadas. Foto: Patricia Stavis
Sistema Cantareira tem o menor nível em duas décadas. Foto: Patricia Stavis
Sistema Cantareira tem o menor nível em duas décadas. Foto: Patricia Stavis
Sistema Cantareira tem o menor nível em duas décadas. Foto: Patricia Stavis
Sistema Cantareira tem o menor nível em duas décadas. Foto: Patricia Stavis
Sistema Cantareira tem o menor nível em duas décadas. Foto: Patricia Stavis
Sistema Cantareira tem o menor nível em duas décadas. Foto: Patricia Stavis
Sistema Cantareira tem o menor nível em duas décadas. Foto: Patricia Stavis
Vaca caminha pela Represa Jacareí, no dia 29 de janeiro: normalmente ali teria água. Foto: Futura Press
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"Os cenários elaborados no decorrer da crise hídrica de 2014 partiram de premissas irreais, considerando vazões de afluência muito superiores àquelas efetivamente verificadas, resultando em cenários futuros bastante otimistas em relação ao esgotamento do volume útil dos reservatórios, distantes da situação fática", diz o documento. "A utilização de tais cenários irreais pela ANA/DAEE foi deliberadamente adotada com um único propósito: evitar ou, pelo menos, adiar a imposição à Sabesp de redução de suas vazões de retirada e a imposição de medidas de restrição necessárias e compatíveis."
Ainda de acordo com o documento, caso fosse respeitada a retirada de acordo com a Curva de Aversão a Risco, de vazões afluentes relativas a 50% das mínimas da série histórica (de 1953), o Cantareira chegaria a maio deste ano ainda com 38 hectômetros cúbicos (cada hm³ equivale mil milhões de litros) da primeira cota do volume morto. A reserva, no entanto, secou em outubro.

Agora, a previsão de estudos do Departamento de Recursos Hídricos da Universidade de Campinas (Unicamp) mostram que a segunda cota do volume morto do Cantareira deve acabar já em maio e a terceira, até meados do ano passado totalmente descartada de uso, não deve passar de outubro caso as chuvas não venham. Na prática, isso significa o fim do sistema, que não teria mais água disponível nem em seu volume morto.
"Todas as aprovações para o uso dos sistemas são conjuntas entre o DAEE e a ANA. Então é impossível retirar a responsabilidade federal do manejo da crise", explica Antônio Carlos Zuffo, chefe do Departamento de Recursos Hídricos da Unicamp. Assim como os outros especialistas consultados, ele cita o esvaziamento dos comitês de gestão de crise e a falta de transparência como principais responsáveis pela falta de ações.
"Onde existe gerenciamento bem sucedido, ele é descentralizado e participativo. Por isso são necessários os comitês de bacias. Mas no ano passado optou-se pela via do fracasso, do colapso, centralizando tudo nas mãos de dois órgãos, com informações vindas de cima para baixo e, consequentemente, pouco confiáveis, sem transparência", analisa Zuffo. "A responsabilidade de todos os envolvidos era procurar uma negociação que fosse menos dolorosa à população. Mas tudo o que tinha de ser feito de errado foi feito. E agora teremos de enfrentar esta situação."
Fonte Ig

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