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domingo, maio 02, 2021

Capitalismo e guerra

A guerra aumenta a venda de armas, mobiliza a construção civil, a indústria, o comércio e os serviços e, de quebra, elimina os excedentes populacionais, reequilibrando oferta e procura

LUIZ RUFFATO

12 ABR 2017 - 14:02 BRT


Míssil tomahawk que os EUA lançou na Síria.FORD WILLIAMS / AP

 

capitalismo tem como uma de suas mais impressionantes características a capacidade de se renovar constantemente, muitas vezes a partir de suas próprias contradições, transformando tudo em mercadoria, ou seja, em dinheiro. As drogas, que acompanharam a trajetória da Humanidade desde suas origens, só passaram a ser consumidas em massa a partir de sua associação à imagem dos jovens que as usavam como forma de contestação ao capitalismo na década de 1960. Daí para a frente, tornaram-se o mais lucrativo negócio da atualidade, movimentando estimados 320 bilhões de dólares por ano, segundo a ONU. (Em escala bem menor, vale a pena lembrar a utilização do rosto do revolucionário Che Guevara em camisetas, broches, ímãs de geladeira, cartazes, chaveiros, copos, canetas, e tantas outras tralhas, onipresente em todas as partes do mundo.)

De quando em quando, no entanto, o mecanismo de funcionamento do sistema entra em colapso, já que a possibilidade de ampliação do número de consumidores não é ilimitada. Nestes momentos, que são os temerosos períodos de crise, as empresas – a cujos interesses, a rigor, os estados nacionais estão submetidos – lançam mão de suas prerrogativas e pressionam os governantes por uma solução rápida para o retorno da circulação de capital: a guerra. A guerra não só aumenta de maneira considerável a venda de armas – foram 65 bilhões de dólares em 2015 -, mas principalmente mobiliza, em uma segunda fase, a construção civil, cuja cadeia produtiva envolve todos os demais setores, a indústria, o comércio e os serviços. De quebra, elimina os excedentes populacionais, reequilibrando oferta e procura.

Se tomarmos como marco do início do capitalismo a Revolução Industrial, ocorrida no fim do século XVIII na Inglaterra, observaremos que ciclicamente o mundo entra em conflito e dele o sistema sempre sai renovado e fortalecido. As guerras napoleônicas, entre 1792 e 1815, que opuseram a França ao resto da Europa, terminaram com o Congresso de Viena, que no início do século XIX impôs ao planeta a chamada Pax Britannica, garantindo à Inglaterra o controle das rotas marítimas e a livre circulação de seus produtos industrializados por todos os continentes.

Setenta anos depois, em 1885, a Conferência de Berlim repartiu, de maneira arbitrária e violenta, a África e a Ásia entre as principais potências europeias, com objetivo de garantir o fornecimento de matérias-primas a baixos preços e ampliar o mercado consumidor de artigos manufaturados. O despeito da Alemanha, que se sentiu desfavorecida nesta divisão, aliado ao crescente nacionalismo dos países eslavos subjugados ao Império Austro-Húngaro, foi uma das causas geradoras da I Guerra Mundial, que colocou no campo de batalha cerca de 70 milhões de soldados. O resultado foram 10 milhões de mortos – entre civis e militares – e 20 milhões de feridos, e o surgimento da União Soviética, que provocou uma nova correlação de forças na geopolítica internacional.

Menos de 21 anos após o término da I Guerra Mundial, com a Europa ainda em reconstrução, explodiu a II Guerra Mundial, motivada, por um lado, pelo impasse provocado por problemas não resolvidos na conflagração anterior, e, por outro, pelos conflitos de interesses econômicos, sob o verniz de posições ideológicas. O nacional-socialismo do ressentido Adolf Hitler e sua absurda concepção de supremacia ariana, o obscurantismo autoritário estalinista e os chamados “paladinos da democracia” (os países europeus e os Estados Unidos) lutavam para ampliar suas áreas de influência política – a política anda sempre a serviço da economia. Terminada a guerra com a derrota do Eixo (Alemanha, Itália e Japão) - 66 milhões de mortos, entre civis e militares, 35 milhões de feridos –, os Estados Unidos patrocinaram o Plano Marshall para reerguimento dos países europeus – menos aqueles sob influência soviética. Foram investidos cerca de 132 bilhões de dólares em alimentos, fertilizantes, matérias-primas, produtos semi-industrializados, combustíveis, veículos e máquinas – 70% desses bens eram de procedência norte-americana.

Os Estados Unidos saíram da guerra fortalecidos política e economicamente. Junto com seus aliados europeus (incluindo Alemanha e Itália, derrotados na guerra), de um lado, e a União Soviética, de outro, redesenharam o mapa-múndi, inaugurando a Guerra Fria – que, a partir da década de 1950, contaria com mais um protagonista, a China, fundada no absolutismo sanguinário maoísta. Passaram-se mais de 70 anos desde então – um dos maiores períodos de “paz” da história recente da Humanidade. Houve guerras regionais – Coreia, na década de 1950; Vietnã, na década de 1960; Bósnia, na década de 1990, entre vários outros conflitos -, mas nenhum deles opôs diretamente as forças armadas das grandes potências. Os embates da segunda metade do século XX foram, de certa maneira, terceirizados: a indústria armamentista disponibilizava o material bélico e os países em litígio ofereciam o campo de batalha e os soldados.

Hoje observamos o mundo novamente em turbulência. O cenário coloca em rota de colisão os interesses econômicos dos grandes conglomerados norte-americanos, conduzidos pelo midiático e arrogante Donald Trump; os interesses do também arrogante ex-chefe da KGB, Vladimir Putin, ansioso por recuperar o espaço geopolítico ocupado pela antiga União Soviética; e os interesses da ditadura sem rosto chinesa, que, com seu capitalismo de estado, baseado em salários irrisórios, desrespeito aos direitos humanos e ambientais, inunda o mundo com seus artigos baratos, causando impacto tanto na economia norte-americana quanto na geopolítica russa. Observamos ainda o crescimento preocupante do discurso xenofóbico e ultranacionalista da extrema-direita em todas as partes do mundo, particularmente na Europa; a instabilidade da representação democrática na América Latina, sufocada pela incompetência, corrupção e populismo; a derrocada dos países africanos, sucumbidos à corrupção, ao autoritarismo e aos conflitos étnicos e religiosos; a crise humanitária nos países do Oriente Médio e Ásia Central; o perigo atômico encarnado no mimado ditador norte-coreano Kim Jong-un; e o fenômeno típico do nosso século, o recrudescimento dos atentados terroristas fomentados pelo fundamentalismo islâmico.

Por tudo isso, já não temo pelo futuro dos meus netos – temo pelo presente dos meus filhos...

Fonte: Jornal El País https://brasil.elpais.com/brasil/2017/04/12/opinion/1492009074_482693.html

A raivosa atualidade da Idade Média

Ultradireita procura no passado remoto justificativa para suas políticas atuais


A batalha de Poitiers', óleo pintado em 1837 por Charles de Steuben.ANN RONAN (PRINT COLLECTOR / GETTY IMAGES)


GUILLERMO ALTARES

 

idade Média se transformou em um assunto de intenso debate político. Não todo o período histórico, claro, ninguém discute sobre Excalibur e os Cavaleiros da Távola Redonda. O que está sobre a mesa é o momento das invasões muçulmanas, uma época de intensas mudanças políticas em uma Europa cujas fronteiras estavam sendo forjadas.

Nos últimos tempos, a ultradireita nacionalista transformou em uma espécie de totem esses séculos obscuros —são chamados assim pela notável ausência de documentos da queda do Império Romano até mais ou menos o ano 1.000, quando a economia e a administração começaram a se recuperar—. A visão atual sobre esse período tem muito a ver com o presente e muito pouco com um passado que é quase totalmente desconhecido. E é surpreendente ver a segurança com que descrevem aquela época os apologistas desse momento supostamente mítico de defesa da cristandade contra a invasão islâmica. Diversos movimentos de ultradireita agora se aferram a esses relatos para dizer que o fenômeno invasor está se repetindo na atualidade. Não ocorreu no passado e não ocorre agora. E, evidentemente, o que aconteceu não foi como dizem: foram séculos nos quais, basicamente, todo mundo invadia todo mundo.

Esse é um debate que aparece em alguns casos como farsa, por exemplo, quando recentemente foi retirada uma estátua de Abderramão III na cidade espanhola de Cadrete (nome árabe), como primeira medida de uma prefeitura comandada pelo Vox. Mas em outras ocasiões emerge como tragédia: o assassino que em março matou 50 pessoas em duas mesquitas da Nova Zelândia era obcecado com heróis míticos medievais da luta contra o

slã —do espanhol don Pelayo ao sérvio Milos Obilic—, e escreveu seus nomes nos carregadores com os quais realizou a matança.

“Não somente na Espanha, como em toda a Europa, a história da Idade Média se transformou em um foco de debate cada vez mais intenso”, diz Maribel Fierro, professora pesquisadora do CSIC e especialista em Al-Andalus. “A ideia da recuperação de uma suposta identidade imutável dos povos voltou a ressurgir. Os períodos que reivindicam são momentos em que ocorreram batalhas contra os muçulmanos. Sua ideia, totalmente infundada, é que o Islã é o inimigo da Europa”.

“A ideia, totalmente infundada, é que o Islã é o inimigo da Europa”. Maribel Fierro, do CSIC e especialista em AL-ANDALUS 

As batalhas que aparecem repetidamente nesse imaginário são Poitiers em 732, Covadonga em 722 (ou 718, 737 ou 754, de acordo com as diferentes versões), Kosovo em 1389 e, muito mais tarde, Viena em 1683. As duas primeiras foram confrontos com as tropas árabes e berberes procedentes do norte da África e da península Arábica; as segundas, contra os turcos. O problema com Poitiers, Covadonga e Kosovo é que são acontecimentos em que a história se mescla ao mito e sobre os quais os especialistas têm poucos dados, dispersos, tardios e duvidosos. Não se conservou o relato de uma testemunha contemporânea de nenhuma dessas batalhas. Todos esses mitos também foram reinterpretados nos séculos XIX e XX quando ocorreu a explosão dos Estados nacionais na Europa e se transformaram em relatos fundacionais.

As primeiras versões da batalha de Covadonga, com a qual começou a chamada Reconquista, vêm da Crônica de Alfonso III, por volta do ano 900, ainda que esse relato só tenha se popularizado no século XIII. É possível dizer a mesma coisa da batalha de Kosovo, o grande mito nacional sérvio, explorado até a última gota pelo nacionalismo balcânico. Na verdade, como afirma o historiador Noel Malcolm em Kosovo: A Short History (Kosovo: Curta História), ignora-se quase tudo sobre esse combate, não se sabe com certeza nem mesmo quem ganhou: a tradição diz que os sérvios perderam seu Estado aos turcos e construíram seu nacionalismo sobre a nostalgia e a derrota. O cavaleiro Milos Obilic, entretanto, que segundo a lenda matou o sultão Murad, é venerado quase religiosamente e fazia parte do avariado universo mental do assassino de Christchurch na Nova Zelândia.

Sobre a batalha de Poitiers, em que Carlos Martel supostamente derrotou os muçulmanos impedindo seu avanço ao norte, o medievalista da Universidade St. Andrews James T. Palmer escreveu um ensaio muito interessante. O artigo foi publicado no The Washington Post com o título de A história falsa que impulsionou o acusado da matança de Christchurch. No texto o professor mostra como a interpretação do confronto foi mudando: para Edward Gibbon, no século XVIII, simbolizava a perda da herança da Grécia e Roma; para Jules Michelet, no XIX, não era muito importante porque o problema estava nas invasões germânicas do norte; segundo Steve Bannon, um dos ideólogos do pensamento ultradireitista atual, ex-assessor da Casa Branca, essa batalha representa um convite a defender o Ocidente contra o Islã. “Não existem novas fontes históricas e sim uma nova agenda”, escreve Palmer. “Ao invocar o legado de Carlos Martel, o assassino de Christchurch abusa da história para justificar a violência. Ele se baseou na maneira em que esse acontecimento aparece descrito em muitos livros e sites, de modo que não se trata somente de um problema de ignorância. O que precisamos entender e combater é como momentos históricos como Poitiers receberam um significado através da política”.

Por trás dessa visão nacionalista do medievo se escondem vários pressupostos contraditórios com a pesquisa científica contemporânea. Primeiro, que os habitantes da Europa no século XXI são os herdeiros dos que habitavam esse mesmo lugar há séculos. Essa afirmação ignora que as unidades políticas são completamente diferentes, para não falar das migrações e misturas que marcam a história. Segundo, que podem ser estabelecidos paralelismos entre sociedades de séculos atrás e as atuais, sem levar em consideração as abismais diferenças que as separam em inúmeros assuntos, da escravidão à tecnologia. E, por último, que, mesmo admitindo essa herança, ela não precisa condicionar o presente.

“Essa mobilização reivindicando o passado é sempre ligada a tensões do presente, à necessidade de certas comunidades, ideologias e projetos políticos de encontrar suas justificativas”, diz Eduardo Manzano Moreno, pesquisar do CSIC, especialista em Al-Andalus, que recém-publicou La Corte del Califa (A Corte do Califa). “A simples regra de maior ou menor proximidade em relação a esse passado nem sempre funciona: os romanos e os mongóis puderam cometer todo o tipo de massacres e ninguém se importa, mas no caso dos muçulmanos, o discurso conservador tenta colocar a ideia de uma similitude exata entre o que ocorreu na Idade Média e o presente, algo que os próprios radicais islâmicos também alimentam”.

O historiador Jean-Paul Demoule estudou o assunto em seu livro Les dix millénaires oubliés qui ont fait l’histoire (Os Dez Milênios Esquecidos que Fizeram a História), e explica como os nacionalismos que explodem após a Primeira Guerra Mundial exploram a ideia de um povo que se manteve imutável ao longo dos séculos submergindo-se até mesmo na pré-história. “Foi preciso garantir a cada um desses Estados um passado glorioso, que se remonta aos confins dos tempos e que garante a existência da nação através da eternidade”, escreve o professor de Sorbonne. Seu ensaio acaba com uma pergunta: “A história não é muito mais interessante quando os seres humanos a escolhem do que quando a padecem?”.

A Fuga da Família Real para o Brasil

 

Napoleão
Depois de governar cinco anos como cônsul, Napoleão Bonaparte foi coroado imperador da França em 1804. Conquistando grande parte da Europa continental, não conseguiu, contudo, submeter a Inglaterra.

Em 1806, o imperador francês Napoleão Bonaparte assinou em Berlim o decreto do Bloqueio Continental, que proibia, a todos os países do continente europeu, fazer comércio com a Grã-Bretanha (comumente chamada de Inglaterra, embora esta última não corresponda à totalidade do território britânico). O fato de Napoleão ter determinado essa medida em plena capital da Prússia – e não em Paris – nos dá conta da hegemonia que ele alcançara sobre as demais monarquias da Europa.

Incapaz de derrotar a inimiga Inglaterra no mar, devido à inferioridade naval francesa, o imperador pretendia debilitá-la economicamente, forçando o governo de Londres a um entendimento com a França.

Na ocasião, a Inglaterra era o único país do mundo que já se encontrava em plena Revolução Industrial. Como na França esse processo ainda era incipiente, seria impossível preencher o vácuo criado pela falta de produtos britânicos. Estes, portanto, continuaram a entrar na Europa Continental, por meio de contrabando. Na verdade, o Bloqueio Continental prejudicou mais os países que o praticaram do que aquele contra o qual ele fora planejado. A Holanda recusou-se a acatar as determinações de Napoleão, que mandou invadi-la e impôs seu irmão, Luís Bonaparte, como rei dos holandeses.

O Bloqueio Continental deixou Portugal em uma situação delicada. Desde 1641, ou seja, logo após o final da União Ibérica (1580-1640), o país caíra sob a dominação da Inglaterra. Essa relação se consolidará ao longo dos anos, notadamente após a assinatura do Tratado de Methuen (ou dos Panos e Vinhos, 1703), e foram inúteis os esforços do ministro Marquês de Pombal (1750-77) para alterá-la.

Em 1792, a rainha D. Maria I, atingida por irremediável doença mental, fora afastada da chefia do Estado. Em seu lugar, assumiu o governo, na qualidade de regente, o príncipe-herdeiro D. João (futuro D. João VI).

Se por um lado Portugal não podia afrontar Napoleão, dada sua vulnerabilidade a um ataque francês (na ocasião, a França era aliada da Espanha, por cujo território as tropas francesas necessariamente teriam de passar), por outro também não podia simplesmente romper com a Inglaterra. Aliás, a indiscutível supremacia marítima britânica inviabilizaria as comunicações entre Portugal e Brasil – principal colônia lusitana, de cuja exploração dependia a própria sobrevivência econômica de Portugal.

Em agosto de 1807, o governo francês enviou um ultimato a Portugal: ou aderia ao Bloqueio Continental, ou teria seu território invadido. Diante da negativa de D. João, os embaixadores da França e Espanha retiraram-se de Lisboa em 1º de outubro, como prenúncio da invasão.

Nessa situação crítica para o governo português, a Grã-Bretanha interveio por meio de seu embaixador em Portugal, lorde Strangford: o governo britânico oferecia proteção naval para que não só a Família Real, mas toda a Corte Portuguesa (isto é, os nobres que conviviam com a Família Real e seus servidores) e os funcionários do governo se transferissem para o Brasil. Em contrapartida, Portugal se comprometia – mediante um acordo firmado secretamente – a ceder temporariamente a estratégica Ilha da Madeira aos britânicos e a permitir o comércio direto entre a Grã-Bretanha e o Brasil.

Em 27 de outubro de 1807, França e Espanha assinaram o Tratado de Fontainebleau, que destronava a Dinastia de Bragança, reinante em Portugal desde a Restauração de 1640. O território português seria dividido em três partes, a maior das quais caberia pessoalmente a Napoleão.

Em 19 de novembro, o general francês Junot penetrou com suas tropas em Portugal, avançando rapidamente para o sul, em direção a Lisboa. Três dias antes, uma frota britânica ancorava no Rio Tejo, colocando-se à disposição do príncipe D. João para trasladá-lo ao Brasil.

O que se seguiu foi um grotesco quadro de atropelo, confusão e desespero, agravado pelas notícias da célere aproximação dos franceses. Ao todo, mais de 10 000 pessoas apinharam-se a bordo de 16 navios de guerra e 20 de transporte – todos portugueses. A frota britânica do almirante Sidney Smith dava-lhes cobertura.

Foram embarcados os arquivos dos ministérios, móveis e pratarias, bem como uma enorme soma de dinheiro, equivalente à metade das moedas que circulavam em Portugal. Parte da guarnição militar de Lisboa também foi para bordo com seu armamento. Em suma: O ESTADO METROPOLITANO PORTUGUÊS TRANSFERIU-SE PARA SUA COLÔNIA BRASILEIRA! Essa completa subversão das regras do pacto colonial traria enormes benefícios para o Brasil.

No dia 29 de novembro de 1807, a frota anglo-portuguesa levantou âncoras. Menos de 24 horas depois, à frente de seus soldados esfalfados, Junot entrava em Lisboa.

O Governo Joanino no Brasil

A transferência do Estado Português para o Brasil foi fundamental para que nosso país pudesse encaminhar seu processo de emancipação política. O primeiro passo nesse sentido foi dado poucos dias após o desembarque de D. João na Bahia (de onde depois se transferiria para o Rio de Janeiro). Trata-se do decreto (na época denominado carta-régia) de abertura dos portos brasileiros “a todas as nações amigas” – que na ocasião se resumiam à Inglaterra, já que até os Estados Unidos mantinham relações preferenciais com a França Napoleônica.

É verdade que pouco depois, pelos Tratados de 1810, o governo português concedeu ao comércio e aos cidadãos britânicos condições privilegiadas para atuar no Brasil. Mas outra não poderia ser a atitude lusitana, tendo em vista a fragilidade da posição de Portugal em face de seu poderoso aliado.

Durante o tempo em que permaneceu no Brasil, D. João, assessorado por ministros capazes, tomou numerosas iniciativas importantes, que deram ao Brasil um certo arcabouço administrativo e cultural. No plano econômico, foi revogado o alvará de D. Maria I que proibia a instalação de indústrias no Brasil; ainda no econômico, criaram-se a Casa da Moeda e o Banco do Brasil; no militar, fundaram-se as Academias Militar e Naval e foi implantada uma fábrica de munições; no cultural, surgiram a Imprensa Régia, a Biblioteca Real, o Real Teatro de S. João, o Jardim Botânico e as Escolas de Medicina da Bahia e do Rio de Janeiro, além de se contratar a vinda, após a queda de Napoleão, de uma importante Missão Artística Francesa.

O coroamento de todas essas realizações deu-se em 1815, quando foi instituído o Reino Unido de Portugal, Brasil e Algarves ( este último território corresponde ao extremo sul de Portugal). Com isso, o Brasil deixava de ser uma colônia, equiparava-se a Portugal e – mais que isso – tornava-se a sede legalizada do Reino Lusitano.

De um modo geral, a aristocracia rural brasileira aceitou de bom grado a administração joanina. Tal avaliação, porém, não se aplica a Pernambuco, onde o antilusitanismo sempre foi muito forte e havia uma intensa atuação da Maçonaria (uma organização secreta, ideologicamente liberal, e, portanto, oposta ao absolutismo de D. João). Acrescentem-se a esse quadro o aumento de impostos (para sustentar a Corte Portuguesa no Brasil) e a crise nas exportações do açúcar (devido ao consumo do açúcar de beterraba na Europa), e teremos os elementos detonadores da Revolução Pernambucana de 1817. Esta foi duramente reprimida, mas alguns de seus líderes não chegaram a ser executados, graças a um ato de clemência de D. João.

No plano sul-americano, o governo joanino empreendeu duas ações militares. A primeira, como uma retaliação à invasão napoleônica de Portugal, foi a ocupação da Guiana Francesa por tropas portuguesas transportadas em navios britânicos; todavia, com a queda do imperador francês, o território foi restituído ao novo rei, Luís XVIII.

Já a segunda ação militar teve maior importância. Aproveitando a ebulição emancipacionista que agitava a Bacia Platina, D. João determinou a invasão da chamada Banda Oriental (atual Uruguai), que integrava o Vice-Reino do Prata. O líder emancipacionista Artigas foi batido pelas forças luso-brasileiras e a região, com o nome de Província Cisplatina, viu-se incorporada ao Brasil, de quem só se libertaria em 1828.

Regresso de D. João a Portugal

Se no geral o governo de D. João VI (rei a partir de 1816, quando do falecimento de D. Maria I) foi benéfico para o Brasil, em Portugal ele gerou fortes ressentimentos – sobretudo entre a burguesia, que desde 1808 perdera o lucrativo monopólio do comércio com o Brasil.

Além da crise econômica, Portugal sofrera com as invasões francesas (ao todo, foram três) e com as lutas travadas principalmente por tropas britânicas para repeli-las. Adicionalmente, havia um sentimento de humilhação diante da Inversão Brasileira, que colocara o Brasil no topo do Reino Unido, tanto em termos administrativos como econômicos. Napoleão caíra definitivamente em 1815; mas D. João recusava-se a voltar para Portugal, o que abria a perspectiva de o Rio de Janeiro se tornar a capital permanente da Monarquia Lusa.

Desde fins do século XVIII, as idéias liberais (isto é, antiabsolutistas) vinham penetrando em Portugal. Essa ideologia ganhou maior espaço durante a ausência da Família Real, já que tanto ingleses como franceses – cujas tropas disputavam o território português – representavam tendências contrárias ao Antigo Regime ainda vigente em Portugal: os britânicos, pelo fato de adotarem a monarquia parlamentarista; os franceses, porque ainda personificavam o ímpeto de sua Revolução, se bem que transmudado no centralismo napoleônico.

Após a expulsão dos invasores franceses, Portugal passou a ser administrado por um general inglês, Beresford. D. João foi constrangido a nomeá-lo lugar-tenente (isto é, substituto imediato) do rei para o território português. Na prática, porém, Beresford atuava como administrador absoluto, subordinado apenas formalmente à autoridade real. Uma humilhação a mais para os portugueses.

Em 24 de agosto de 1820, aproveitando a ausência de Beresford, que viajara para o Rio de Janeiro, irrompeu na cidade do Porto uma revolução liberal, conduzida pela burguesia mas com forte participação popular. O movimento ganhou rapidamente o país e uma Junta Provisória de governo convocou eleições para uma Assembléia Constituinte que poria fim ao absolutismo.

No Brasil, as novas sobre a Revolução do Porto tiveram boa aceitação, tanto entre a aristocracia rural como entre os comerciantes portugueses aqui radicados. D. João VI, confrontado com uma grande manifestação popular, jurou respeitar a Constituição que iria ser feita em Portugal; aceitou ainda que as províncias brasileiras passassem a ser administradas por Juntas Provisórias formadas por figuras locais preeminentes, enquanto não se promulgava uma Constituição para o Reino Unido.

Em janeiro de 1821, a Assembléia Constituinte foi instalada em Lisboa, com o nome de Cortes (denominação de assembléias que se reuniam em Portugal e Espanha desde a Idade Média; não confundir com a Corte Portuguesa, que se encontrava no Rio de Janeiro). Deputados brasileiros foram enviados para participar dos debates.

Mas as Cortes de Lisboa tinham uma posição ambígua: eram indiscutivelmente liberais em relação a Portugal; mas na atitude para com o Brasil eram reacionárias, pois tinham o projeto de recolonizá-lo, mediante a supressão do Reino Unido declarado em 1815. Para executar esse projeto, porém, era necessário primeiro que o governo português se reinstalasse em Portugal.

Como D. João VI não era mais absoluto e as Cortes representavam a máxima autoridade política do Reino Unido, não foi difícil pressioná-lo para voltar. Assim, em 24 de abril de 1821, o monarca embarcou com sua família para Lisboa. Deixou no Rio de Janeiro, porém, com o título de príncipe-regente, seu filho e herdeiro D. Pedro, com 24 anos. E, ao se despedir, deu-lhe o célebre conselho: “Pedro, se o Brasil se separar de Portugal, toma a coroa para ti, antes que algum aventureiro lance mão dela.”

Em 7 de setembro seguinte, com o grito do Ipiranga, o príncipe atendeu à recomendação do pai.

O quadro de Debret retrata o embarque da Família Real de volta a Portugal em abril de 1821.

O quadro de Debret: O embarque da Família Real de volta a Portugal em abril de 1821

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