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segunda-feira, maio 18, 2015

A era do retrocesso: as esquerdas e as guerras no século XX

Por Vito Letízia
Professor do Departamento de Economia da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo e diretor do Centro de Estudos do Movimento Operário Mário Pedrosa.
Eric Hobsbawn, na última obra de sua tetralogia sobre a sociedade capitalista, A Era dos Extremos1, reúne as duas guerras mundiais do século XX e o período entreguerras numa única "era da catástrofe", caracterizada pelas duas guerras, pela grande depressão dos anos 30 e por toda a brutalidade social desencadeada no período, inclusive as seqüelas violentas da Revolução Russa.
No que diz respeito às guerras mundiais, de fato, não houve duas guerras, mas sim um único e prolongado conflito interimperialista, com dois períodos agudos, separados, pelo intermezzo dos anos 1918-39. Pois nenhum dos problemas colocados pelo capitalismo em sua fase imperialista teve sequer sombra de solução na grande matança de 1914-18.
A Primeira Guerra Mundial foi apenas a primeira manifestação aguda de um dos dois grandes conflitos que dominaram o mundo capitalista a partir dos anos 70 do século XIX: o conflito produzido pela competição econômica e militar entre as grandes potências ocidentais; e o produzido pelo avanço do movimento operário organizado, então carregado de forte potencial revolucionário. Esse conflito duplo, dada as rigidez das posições em confronto, apontava inexoravelmente para a guerra e para a revolução.
Que o mundo marchava para uma grande guerra, parecia evidente aos dirigentes do movimento operário europeu desde 1891, quando, em seu congresso de Bruxelas, a Internacional Socialista coloca a questão da marcha para a guerra na ordem do dia e se define como "partido da paz". Todos os congressos posteriores da Internacional Socialista, até 1912, abordam a guerra como questão central, cabendo a Kautsky, em seus artigos para a Neue Zeit, desde 1899-1900, definir com grande precisão o caráter imperialista e mundial da guerra em preparação. A partir de 1905, com a revolução deste ano na Rússia, pareceu também evidente aos socialistas que a guerra poderia ser uma oportunidade extraordinária para a eclosão da revolução proletária. Tal ligação entre guerra e revolução foi exposta, pela última vez consensualmente, no Congresso de Stuttgart (1907).
As previsões dos socialistas verificam-se inteiramente exatas em 1914. A guerra envolve, direta ou indiretamente, o mundo inteiro e desdobra-se em mudança interimperialista e revolução; esta se concretiza na Rússia, com a Revolução de 1917, e na Alemanha com a Revolução dos Conselhos de Operários e Soldados em 1918, seguidas de um forte ascenso das correntes políticas mais à esquerda, ondas de greves e convulsões sociais que se estenderam até 1922, inclusive uma república soviética efêmera, em 1919, na Hungria.
Pode-se conjecturar se outro desenvolvimento das revoluções russa e alemã poderiam ou não dar uma solução duradoura aos problemas manifestados pela guerra. De qualquer modo, a evolução histórica concreta, infelizmente, mostrou que os resultados de ambos os conflitos supracitados não só ficaram sem solução como se aguçaram, preparando as condições para uma guerra ainda mais destrutiva vinte anos mais tarde.
Quanto aos resultados do conflito interimperialista, em 1918, há muito é consenso entre a maioria dos historiadores que o Tratado de Versalhes (1919) foi um dos fatores da guerra seguinte: foi o primeiro tratado de paz que estabeleceu fronteiras novas com base em critérios étnicos, com parcialidade escandalosa em relação às etnias (ou amálgamas artificiais de etnias) entendidas como potencialmente antigermânicas. Talvez o caso mais aberrante dessa operação tenha sido a invenção de uma Iugoslávia sob hegemonia sérvia, que a União Soviética se recusou a reconhecer até 1926, e que mostrou seu potencial genocida após o desmoronamento do socialismo real.
Quanto ao conflito social, o desfecho de 1914-18 deu início a dois processos paralelos e cada vez mais combinados: uma tentativa agressiva de restabelecimento das primitivas condições da dominação burguesa anterior às conquistas operárias do fim do século XIX e início do atual; e, por outro lado, um processo autodestrutivo no movimento socialista, desencadeado pela evolução da URSS, que ia deixando espaços cada vez maiores ao movimento reacionário burguês.
O restauracionismo burguês pós-1918
Restauracionismo é talvez o termo mais adequado para explicar a tendência dominante entre a burguesia mundial após a Primeira Grande Guerra, mais precisamente, após o arrefecimento da borrasca revolucionária iniciada em 1917 e encerrada em 1922, após o fim da guerra civil e início de Nova Política Econômica na Rússia.
Abre-se nesse momento um período de avanço de movimentos direitistas, dos quais, num primeiro momento, o fascismo não foi o preferido da burguesia, mesmo na Itália, onde, apesar da vitória de 1922, o fascismo tem uma trajetória oscilante, pelo menos até 1928, mas só firmando-se definitivamente após a vitória de Hitler em 1933. Em geral, a evolução para a direita das burguesias ocidentais expressava-se mais em movimento restauracionista do velho autoritarismo (monárquico quando possível), quase sempre clerical-reacionário e nacionalista.
Para entender esse processo é preciso situar, em seu devido contexto, o desenvolvimento do que é conhecido como liberalismo (político), no fim do século XIX, caracterizado basicamente por ampliação do direito de voto e legalização das organizações operárias. As facções conservadoras da burguesia nunca se conformaram com a cessão de direitos civis e políticos aos trabalhadores, tornada praticamente inevitável com o crescimento rápido das cidades industriais e das massas operárias que as povoavam; massas cada vez mais organizadas em movimentos com forte conteúdo revolucionário. Era uma época em que não havia fronteira entre organização sindical e política para os trabalhadores, mesmo porque estes só podiam conquistar direitos em bloco (direitos civis, na realidade) ou serem vencidos. Suas vitórias (muito variadas de um país para outro) foram sempre sentidas como uma derrota pelos conservadores de todos os matizes, que eram majoritários e/ou dominantes em toda parte até a Primeira Guerra Mundial.
Nem todos os historiadores se deram e se dão conta das verdadeiras dimensões sociais dessa luta. Esta ia muito além do mero antagonismo entre burgueses e operários vítimas da brutalidade patronal característica (e tida por muitos como inevitável) nos primeiros tempos do capitalismo. Foi, na realidade, uma luta da burguesia pela preservação de um mundo em que os trabalhadores não faziam parte da sociedade civil.
Paul Mantoux, na excelente obra A Revolução Industrial do século XVIII, mostra o verdadeiro caráter das relações de trabalho nos primeiros tempos do capitalismo. Eram relações servis. Na Grã-Bretanha, os patrões se referiam a seus empregados como "servos" (servants). E se recusavam a participar de comissões de arbitragem (estabelecidas pela lei) porque para "senhores" (masters) era inaceitável sentar-se na mesma mesa de negociação com servos. Foi necessário esperar 1875 para que a legislação trabalhista britânica extirpasse os termos master e servant de seu vocabulário.
As leis restritivas à participação popular nas eleições da época de ouro do liberalismo econômico não significavam apenas a resistência de igrejinhas políticas que queriam reeleger-se por meio de calmas campanhas dirigidas a uma elite familiar ou limitadas a conquistar poucos votos nos "burgos pobres" britânicos. Aquelas restrições eleitorais expressavam de fato uma hierarquia social herdada da época pré-capitalista.
Ao longo de boa parte do século XIX, a vida social dos que tinham acesso à educação e ao bem-estar estava infinitamente acima do populacho, como mostra Hobsbawn em A Era do Capital3. Em relação a este, sequer se considerava manter em vigor as normas de pudor e decência, tão importantes na sociedade puritana da época: os banheiros das fábricas eram abertos e comuns a homens e mulheres e, nas minas úmidas e mal arejadas, homens e mulheres trabalhavam lado a lado, nus da cintura para cima. Os bons costumes e a boa moral estavam reservados às "pessoas de bem", que não dependiam do trabalho braçal para sobreviver. Estes se consideravam portadores de um direito "natural" de fazer política e dirigir a sociedade.
É esse mundo hierarquizado que começa a desmoronar lentamente antes as arremetidas do movimento operário, a partir dos anos 70 do século passado. Começa a desmoronar, mas não sem acumulação de ressentimentos por parte dos inconformados com a "subversão dos valores" trazida pelas reformas eleitorais, pelas leis trabalhistas, pela extensão da educação primária gratuita e, principalmente, pela perspectiva de revolução social, levantada pelos que haviam alcançado tais conquistas.
Assim, enquanto na Itália o Vaticano centralizava a reação conservadora, na França, após a anistia dos comunardos (1880), a legalização das associações operárias (1881) e a instituição do ensino primário estatal (1882), a reação monárquico-clerical organiza-se nas ligas dos patriotas e, mais tarde, (1890), na Action Française; enquanto na Grã-Bretanha, com a ampliação do direito de voto em 1883, a burguesia inicia sua migração para o Partido conservador, que se acelera após a fundação do Independent Labour Party, em 1893; e no resto da Europa capitalista, movimentos reacionários de formas variadas vão tomando corpo, sempre com características defensivas de velhas prerrogativas ameaçadas.
Todas essas forças representativas do ressentimento burguês pelo mundo perdido de sua dominação "natural" (usufruída ao lado de restos de velhas aristocracias de sangue), após 1918, viram-se colocadas no mesmo terreno dos movimentos fascistas, que surgiam na época. Após um período de hesitação ante à brutalidade perigosamente irregular dos fascistas, terminaram estabelecendo variadas formas de ligação com estes, chegando até a fusão (Alemanha) ou quase (Itália). Exceção foram os Estados Unidos, onde não houve um verdadeiro ascenso importante do movimento operário antes dos anos 30; e a Grã-Bretanha, onde a direita foi centralizada pelo Partido Conservador, embora não deixasse de aparecer, em mais de uma ocasião, sua admiração por Mussolini.
O fascismo foi um movimento extremado a serviço de forças reacionárias muito mais amplas e profundas que os bandos arregimentados para desfilar fazendo a saudação romana. Sem dúvida, não foi um mero braço armado do capital monopolista, como pretendeu certo marxismo ortodoxo. O amplo espectro de forças reacionárias que buscavam sua revanche das derrotas anteriores a 1914, só se serviu do fascismo plebeu quando e enquanto isso foi inevitável. Quando pôde dispensá-lo, não deixou de fazê-lo, como no caso do clericalismo conservador de Áustria, Hungria e Portugal, assim como do autoritarismo nacionalista monárquico ou republicano da Europa oriental.
Para todas essas forças reacionárias, quando sua força própria era insuficiente, tornava-se irresistível a atração do fascismo, principalmente por sua capacidade de tirar partido de velhos preconceitos medievais para atrair até trabalhadores desnorteados (em parte devido à irracionalidade crescente do movimento socialista a partir dos anos 20) e por sua capacidade de criar um movimento de rua, semimilitar, voltado para a destruição de sindicatos, partidos e órgãos de imprensa do operariado.
Obviamente, uma sociedade tornada ordeira e disciplinada, mesmo por meio de bandos paramilitares, é sempre um bom ambiente para manter baixos os custos de mão-de-obra . Nem só de sentimentos desinteressados é feito o amor aos valores tradicionais. A ansiada restauração do mundo hierarquizado da primeira metade do século XIX permitia o retorno dos trabalhadores a "seu lugar" de mão-de-obra com poder de barganha próximo de zero, como a velha mão-de-obra servil.
Rebaixamento político e autodestruição no movimento socialista
É impossível explicar a eficácia do restauracionismo burguês a partir dos anos 20 sem reconhecer que, simultaneamente, ocorria um processo autodestrutivo no movimento socialista.
Hoje, finalmente, foi conquistada uma quase unanimidade quanto à admissão de que algo errado deve ter havido na construção do Estado soviético saído da Revolução Russa. Em função disso, discute-se muito que erros ou lacunas haveria na teoria marxista, ou que desvios dessa teoria estariam por trás do fracasso do socialismo real. Deixando de lado esse falso problema — pois nenhuma teoria, certa ou falsa, é determinante do processo histórico concreto —, interessa aqui identificar fatos que fizeram com que o conflito social embutido na guerra de 1914 reaparecesse em 1939, porém, num nível muito mais baixo, em termos de clarificação do que estava realmente em jogo e de prática política concreta.
Esse conflito social se apresentou, em 1914, como um enfrentamento entre uma solução militar da competição imperialista e uma proposta socialista (ou, pelo menos, de superação do imperialismo). Em 1939, apresentou-se como um enfrentamento entre potências fascistas e potências ditas democráticas, sendo que, em 1939, a URSS se encontrava (até 1941) do lado fascista.
Bastante esforço tem sido despendido pelos stalinistas para justificar o Pacto Germano-Soviético de 1939 como uma necessidade de diplomacia internacional, para evitar um ataque prematuro à URSS.
Mesmo querendo levar em conta o argumento; mesmo revelando-se o fato de que os stalinistas já se haviam aliado aos nazistas em 1931 (antes da ascensão destes ao poder) contra os sociais-democratas, então caracterizados como inimigos principais dos trabalhadores alemães, permanece o fato de que os termos do conflito social estavam extremamente rebaixados — porque falseados — a ponto de certos elementos que caracterizavam o movimento socialista em 1914 (luta democrática, por exemplo) aparecerem em 1939 com sinais invertidos
A forma rebaixada do conflito social nos anos 30, a rigor, tem menos a ver com o Pacto Germano-Soviético em si do que com as bruscas guinadas políticas, pouco coerentes entre si, praticadas pela Internacional Comunista stalinizada nesse período, que começa com a caracterização da social-democracia como sendo "objetivamente uma ala moderada do fascismo"4; segue em 1928, com a caracterização da social-democracia como "social-fascismo", igual (ou pior, conforme a ocasião) ao partido nazista; posição reafirmada após a ascensão de Hitler em janeiro de 1933, quando, em abril do mesmo ano, o dirigente stalinista alemão Fritz Heckert explica aos militantes que "o desabamento do regime fascista na Alemanha depende, antes de tudo, da liquidação da influência da social-democracia reacionária"5, isso num momento em que Hitler mandava prender os sociais-democratas em massa. Diga-se de passagem, também entre organizações operárias, as relações nunca tinham descido ao ponto de uma organização aceitar a destruição de outra (no caso, do maior partido dos trabalhadores alemães) pela polícia de um estado capitalista repressor, sem se considerar atingida.
Essa política que priorizava a luta contra a social-democracia, acima de tudo, só muda em 1934, com a política de frente popular, que inclui os sociais-democratas numa vasta frente antifascista, dirigida também aos partidos burgueses tidos como democráticos (na prática, antigermânicos). E muda novamente, em 1939, quando o Pacto Germano-Soviético obriga a nova guinada. Nas justificativas desse Pacto, apresentada pela Internacional Comunista aos militantes, não há qualquer menção à necessidade de manobrar diplomaticamente para afastar o perigo de uma agressão da Alemanha (o que seria legítimo em tese). Pelo contrário, o Pacto é apresentado simplesmente como política leninista correta. É o que explica Dimitrof, chefe da Internacional Comunista:
"A Alemanha se encontrava no seguinte dilema: rebaixar-se ao nível de auxiliar do imperialismo inglês e francês, fazendo a guerra contra a URSS ou dar uma guinada decisiva e engajar-se no caminho das relações pacíficas com a URSS. Como os fatos demonstram, a Alemanha escolheu o segundo caminho".6
E, quanto aos adversários da Alemanha, explica:
"Atualmente os imperialistas ingleses e franceses assumem o papel de adeptos mais fervorosos do prolongamento e da extensão da guerra".7
Essa posição é repetida em 1940, quando da invasão da França (e de outros países) pela Alemanha, ocasião em que os militantes recebem o esclarecimento de que:
"Graças aos esforços dos imperialistas ingleses e franceses por arrastar pequenos países para o seu lado na guerra, quatro estados independentes foram ocupados: Dinamarca, Noruega, Holanda e Bélgica"8.
Ao mesmo tempo o Arbeidern, jornal do PC norueguês, aconselhava o povo a renunciar a toda forma de oposição antialemã, inclusive a resistência passiva. Aliás, o jornal passa a reproduzir os comunicados de guerra alemães.
Finalmente, quando a Alemanha invade a URSS sem pré-aviso, em 22 de junho de 1941, a Internacional Comunista dá uma guinada final em relação ao fascismo, através de uma diretriz telegráfica transmitida a todos os partidos comunistas europeus no fim do mesmo dia da invasão. A diretriz (antifascista) determina:
"É indispensável desenvolver um movimento sob a palavra-de-ordem da formação de uma frente nacional unida"10.
Seu conteúdo é logo explicado:
"Considerem que, na atual etapa, trata-se da libertação do jugo fascista, e não de uma revolução socialista"11.
Que ninguém fosse se enganar e confundir as etapas.
Mas se alguma dúvida restasse quanto ao rebaixamento da política socialista nesse período, basta comparar as questões colocadas pelos partidos operários durante o processo de preparação da guerra antes de 1914 e antes de 1939. No primeiro caso, havia consciência de que se tratava de uma guerra imperialista e os trabalhadores eram convidados a responder à guerra com a revolução. No segundo, de 1939 a 1941, os stalinistas atribuíam toda a culpa da guerra aos imperialistas ingleses e franceses (enquanto os sociais-democratas atribuíam todas as culpas aos alemães); depois de 1941, a luta é restringida ao antifascismo. Compare-se a diretriz telegráfica da Internacional Comunista de 1941 com a resolução do Congresso de Stuttgart em 1907 (apresentada por August Bebel, um moderado):
"Se a guerra eclodir, os socialistas têm o dever de intervir para sustá-la prontamente e de utilizar a crise econômica com todas suas forças, assim como a política gerada pela guerra, para agitar os estratos populares mais profundos e precipitar a queda do capitalismo"12.
Os passos do processo da autodestruição
Tem sido mais ou menos amplamente aceito que um passo importante para a desagregação e retrocesso do movimento socialista foi o não-cumprimento da resolução de Stuttgart pela maioria dos dirigentes que a assinaram.
Uma das explicações mais difundidas para a famosa traição dos principais dirigentes sociais-democratas é a de que os grandes partidos da Internacional Socialista estariam em 1914 dominados por representantes de uma aristocracia operária reformista e conciliadora. Esta foi a explicação de Lenin, por exemplo. A explicação não é descabida, porém não resolve todos os problemas. Principalmente, não explica muitos aspectos da evolução da massa social-democrata depois de 1914. Parte da Internacional Socialista resistiu à onda patriótica desencadeada com as declarações de guerra, desde o primeiro momento, mesmo na Alemanha, onde houve uma gigantesca mobilização popular guerreira pela vitória, tida como certa e próxima. E, a partir de 1917, quando os sacrifícios da guerra começaram a pesar, a resistência à sua continuação começou a crescer rapidamente em toda parte; e o próprio Karl Kautsky (um "renegado", segundo Lenin) abandonou a política patriótica.
De qualquer maneira, se é verdade que a social-democracia havia falido enquanto organização internacional, ainda havia muita vitalidade no movimento social-democrata de cada país; e esta vitalidade foicrescente de 1917 em diante.
A vitalidade da social-democracia tinha bases muito profundas. Graças a ela, os trabalhadores europeus tinham conseguido ascender de uma condição servil ou semi-servil à de cidadãos com direitos políticos, além de se tornarem consumidores não só de alimentos e tecidos baratos. O tamanho das conquistas era enorme para quem vivera o processo de transformações. Essas conquistas, realizadas nos limites nacionais, criaram a ligação dos trabalhadores sociais-democratas com suas respectivas pátrias. Mas a pátria dos trabalhadores ingleses, franceses e alemães era também o lugar social que haviam conquistado em seus respectivos países. Isso dava limites estreitos à integração dos trabalhadores sociais-democratas aos objetos de suas respectivas burguesias e apontava para futuras rupturas, justamente como a que começou a ocorrer a partir de 1917.
Porém, 1917 foi também o ano da tomada do poder pelos bolcheviques na Rússia. A importância do evento colocou estes na posição de modelos de todos os revolucionários, tanto dos sociais-democratas como de todos os novos revolucionários surgidos com as lutas dessa época. O Kaiser foi derrubado pela revolução dos rate, tradução do termo russo soviety (conselhos) em 1918. Embora o poder não tivesse permanecido nas mãos dos trabalhadores alemães, a partir desse momento (novembro 1918), ficou rompido o isolamento da Revolução Russa. Abre-se um período de convulsão social. E somente em 1922, a burguesia européia consegue reequilibrar-se sobre seus próprios pés.
Até certo ponto, era inevitável que, uma vez refluída a primeira vaga revolucionária na Europa ocidental, a burguesia ganhasse um período de respiro. Mas, provavelmente, não era inevitável que um processo autodestrutivo começasse a atingir a Revolução Russa a partir de 1918. E a verdade é que já nesse ano os bolcheviques começam a falhar em dois pontos, que todos esperavam que a revolução fosse resolver: o desmantelamento da prisão dos povos, que era o império czarista, e a realização de uma aliança operário-camponesa, questão importantíssima numa época em que o campesinato ainda tinha grande peso em muitas regiões do mundo.
prisão dos povos foi mantida contra as nações islâmicas do ex-império czarista e contra os povos do Cáucaso em geral. Isso destruiu os movimentos islâmicos favoráveis aos bolcheviques13; e, com isso, o Império Britânico ficou com suas mãos livres para prosseguir sua política colonial no Oriente Médio e na Índia. Parte do famoso isolamento da Revolução russa veio daí, e não apenas dos acontecimentos na Europa.
Por outro lado, a aliança operário-componesa foi arruinada pelo sistema de requisições forçadas, imposto aos camponeses russos. Estes estavam dispostos a pagar um tributo à revolução (em percentagem da colheita), porque não queriam perder suas terras, permitindo uma restauração czarista, mas não queriam entregar todo o excedente agrícola, arbitrado segundo critérios extorsivos pelos agentes do poder soviético vindos da cidade.
Não é possível examinar aqui em detalhes as circunstâncias que deram origem a tais políticas desastrosas. No entanto, para entender a evolução posterior da URSS — e do movimento socialista — não se pode deixar de levar em conta que, desde o comunismo de guerra (o período entre 1918 e 1921), foram assentadas as bases da tendência à evolução não-democrática do processo político na URSS. Os camponeses constituíam 80 por cento da população russa. Não há democracia possível em conflito com tão grande parte da população; assim como não era possível que a manutenção da prisão dos povosatravés de uma união soviética forçada, deixasse de levar à russificação do novo Estado. A URSS perdeu sua capacidade de influir positivamente no movimento operário mundial em relação à resistência democrata contra o fascismo.
Essa perda de influência positiva não significou ainda (até os anos 60) perda do poder de alteração da URSS sobre os setores mais radicais do movimento operário mundial. Essa atração, porém, passou a resultar em políticas ineficazes, conciliadoras ou sectárias, quando não suicidárias, como no caso da aproximação com os nazistas contra a social-democracia na Alemanha. A URSS continuou sendo um fator de atração, mas no sentido de rebaixamento do nível de clareza política do movimento operário, assim como do rebaixamento das relações entre suas correntes. O termo soviete, que em 1917-22 era por todos entendido como conselho, carregando consigo a idéia de democracia direta baseada em conselhos populares, foi, cada vez mais, sendo confundido com a idéia de russo, carregando consigo a idéia de autoritarismo. A pátria do "socialismo" dos stalinistas deixou de ser paradigma de liberdade.
Mais negativo ainda, porém, foi o que se passou na própria URSS. Moshe Lewin expõe o que chama de dupla curva regressiva do sistema soviético. O primeiro elemento dessa dupla curva surge quando da coletivização forçada na agricultura, a partir de 1928. Após uma trégua de sete anos com os camponeses russos (durante a Nova Política Econômica), Stalin decide a coletivização (mais precisamente, a arregimentação burocrática) da atividade agrícola. Iniciava-se assim um processo que nada teve a ver com a propaganda da "instauração do socialismo no campo"14. Numa outra obra, Lewin mostra em detalhe como a coletivização stalinista organizou um sistema brutal de opressão no campo, centrado na extorsão dos camponeses; os quais, até as reformas de Khruchtchev, no fim dos anos 50, ficaram reduzidos a uma situação que lhes lembrava a época czarista, quando a extorsão também era coletiva (os impostos incidiam coletivamente sobre o mir: a comunidade camponesa). Daí o termo regressão, utilizado por Lewin15.
O segundo elemento regressivo ocorria, enquanto isso, na indústria, como reflexo da gigantesca repressão desencadeada sobre todo o território soviético a partir de 1928. A transferência de renda do campo para a cidade permitiu a aceleração da industrialização, porém no contexto de uma repressão extrema. Stalin viu-se obrigado a aniquilar toda a camada superior do operariado urbano e recriar, nas fábricas, um corpo de quadros dirigentes completamente novo, a partir da promoção de operários desqualificados, freqüentemente analfabetos, cuja única qualidade era sua fidelidade "canina" em relação a Stalin, que os pusera em postos de comandos para os quais não tinham a menor competência. Nessa época (1928-31), é criado o sistema dos charragui: isolamento dos quadros qualificados da indústria, que davam suas diretrizes por escrito, para que os novos chefes stalinistas soubessem o que fazer.
Assim foi montado, desde sua origem, o sistema industrial soviético, sempre movido a lealdades políticas, muito mais que a competência efetiva. Sistema que gerou uma prática generalizada de falsificação de informações quanto aos custos reais do processo produtivo, encobrindo o desperdício crescente de recursos.
A dupla regressão deu origem a uma agricultura e a uma indústria ineficientes e, a longo prazo, determinou o colapso do sistema soviético.
O mal causado ao movimento operário mundial, porém, foi imediato.
Os trabalhadores revolucionários do resto do mundo defenderam a regressão stalinista, achando que os operários e camponeses russos estavam apenas passando "sacrifícios inevitáveis para construir o socialismo" e, partindo dessa boa fé, desculparam tudo, desde os estranhos pactos com os nazistas até os gigantescos massacres de "sabotadores" na URSS.
Esse mal de efeito imediato foi extraordinariamente agravado pelo que Bettelheim denomina separação entre ideologia e realidade na URSS16 . Esta era apresentada pelos stalinistas como a nação mais democrática do mundo, no mesmo momento em que milhões de camponeses eram reduzidos brutalmente à condição de párias e fuzilamentos em massa acompanhavam os Processos de Moscou. Com isso, o debate no movimento operário deixou de ter contato com qualquer realidade palpável e inteligível. Enquanto na URSS se formava o proletariado mais apolítico do mundo, no Ocidente, os defensores da Revolução russa tinham que navegar entre versões "corretas" oficiais e "calúnias de sabotadores trotskistas". Nem faltaram "autocríticas" arrancadas à força para completar o quadro de retrocesso aos tempos da Inquisição.
Embora seja falso que a barbárie fascista tenha tido o stalinismo como modelo (como afirmaram vários historiadores), é inegável que o rebaixamento político do movimento socialista no período entreguerras foi um fator que facilitou a vitória do fascismo (e do restauracionismo burguês em geral). Principalmente, a inversão e falsificação do conteúdo democrático da Revolução Russa enfraqueceu bastante a luta antifascista.
A depressão econômica dos anos 30 é, por muitos autores, apresentada como decisiva para a ascensão do nazismo. Isso é verdade, mas é insuficiente como explicação. A depressão, num país em que a burguesia não enfrenta um movimento operário forte (EUA), produziu um regime como o de Roosevelt. Em países com um movimento operário forte, porém politicamente rebaixado e sob lideranças desmoralizadas, abriu caminho ao restauracionismo burguês, o qual, em 1939, dominava praticamente toda a Europa, embora nem toda fosse fascista.
A Segunda Guerra Mundial, como assinala corretamente Hobsbawn em A Era dos Extremos, foi uma espécie de guerra civil internacional, ou seja, uma guerra em que havia fascistas dos dois lados, e as lealdades nacionais foram afetadas por esse fato. Assim como em todos os países havia defensores da URSS. Por isso mesmo, o rumo dos acontecimentos na URSS foi decisivo no processo histórico desenrolado entre 1919 e 1939.
A marcha para a Segunda Guerra Mundial inicia-se em 1919 com o Tratado de Versalhes, por obra exclusiva das potências vitoriosas. E toma sua forma definitiva em 1922, com a primeira vitória do restauracionismo burguês, através da ascensão do fascismo na Itália, o mesmo ano em que Stalin inicia sua trajetória de dominação sobre o Partido Bolchevique na URSS. Em 1922, porém, a explosão de uma nova guerra ainda não era a certeza. O fascismo italiano era frágil no início dos anos 20 e a URSS parecia ter saído do comunismo de guerra sem perda completa de sua fisionomia revolucionária. É a coletivização forçada e a falsa industrialização socialista, a partir de 1928, que confirmaram definitivamente o rebaixamento do movimento socialista. É a partir daí que este fica reduzido a um movimento desagregado e cego, afogado num mar de falsificações, promovidas pela burguesia, de um lado, e pelos defensores da regressão stalinista, de outro. Os trabalhadores do mundo ficam divididos entre lideranças opostas, todas incapazes (ou desinteressadas) de distinguir os interesses comuns a todas as correntes do operariado dos interesses burgueses, fascistas ou "democráticos".
A tomada do poder por Hitler em 1933 e a corrida armamentista que se seguiu tornam a guerra definitivamente inevitável. O único problema restante era precisar o momento do desfecho. O Pacto Germano-Soviético, assinado em 27 de agosto de 1939, resolveu esse problema. A guerra estoura em 1de setembro.

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