Michael Löwy recebe a reportagem de Brasileiros para um café. Foto: Luiza Sigulem
Michael Löwy recebe a reportagem de Brasileiros para um café. Foto: Luiza Sigulem
A crise ecológica é mais grave do que a econômica. A afirmação é do sociólogo brasileiro Michael Löwy, defensor de um novo tipo de socialismo que tem como objetivo reprimir as adversidades causadas pelo capitalismo. Chamado de ecossocialismo, o projeto, ainda utópico, parte da ideia de que o conflito entre o ser humano e a natureza levará a civilização a uma catástrofe sem precedentes em poucas décadas. “Estou convencido de que é preciso repensar toda a questão das forças produtivas”.
Radicado na França há 45 anos, Löwy passou, uma temporada no Brasil em outubro último, tempo em que deu aulas na Universidade de São Paulo e lançou seu 23º. livro, A Jaula de Aço, pela Boitempo Nele, o sociólogo destaca pontos em comum entre dois teóricos alemães de profundo desacordo político e metodológico: Max Weber e Karl Marx. Mas, aos olhos de Löwy, eles têm afinidade ao criticar a jaula de aço que o capitalismo impõe aos indivíduos. “Weber é um pessimista resignado, que não vê saída para o capitalismo, e Marx aposta na possibilidade de uma superação revolucionária do sistema. Essa é a grande diferença entre eles”.
Filho de imigrantes judeus de Viena, Löwy nasceu em São Paulo em 1938, estudou Ciências Sociais na Universidade de São Paulo e concluiu seu doutorado, em 1964, na Universidade de Sorbonne, em Paris. Com o golpe civil-militar no Brasil, decidiu se juntar à família em Tel Aviv, Israel, onde permaneceu por quatro anos. Em 1967, partiu para a Inglaterra para lecionar na Universidade de Manchester. Dois anos mais tarde, seguiu para a Paris, onde trabalha, desde 1977, no Centro Nacional e Pesquisas Científicas, que reúne pesquisadores em todos os ramos das ciências naturais e sociais.
No Brasil, Löwy declarou seu voto à candidata Luciana Genro, do PSOL, que teve 1,6 milhão e ficou na quarta posição na corrida presidencial, atrás de Dilma Rousseff (PT), Aécio Neves (PSDB) e Marina Silva (PSB). “Luciana Genro representava mais as minhas ideias, de alguém que é anticapitalista e defende causas satanizadas pela mídia, como direitos humanos, direito aos homossexuais, aborto, contra a violência policial. Ela fez uma campanha corajosa, digna”.
 
Para o segundo turno, o sociólogo apoiou a reeleição da presidenta Dilma. “Meus amigos do PSOL recomendaram o voto nulo ou em Dilma. Fiquei entre os que achavam justo apoiar a presidente, com todas as críticas que temos a ela, que fez concessões demais aos bancos, ao agronegócio, ao capital. A diferença é que Aécio Neves não é alguém que vai fazer concessões, ele é o representante direto dessa oligarquia financeira, capitalista, parasitária, defensor de uma lógica alinhada com o neoliberalismo”.

Preocupado com a crise da esquerda na Europa, Löwy, em entrevista à Brasileiros, fala sobre a tendência ao conservadorismo no Brasil, a crise da esquerda na Europa, seu novo livro e o ecossocialismo.
Brasileiros – Há uma tendência conservadora no Brasil?
Michael Löwy: Sem dúvida há. A expressão mais flagrante foi o voto para deputado federal. A Assembleia atual é a mais direitista desde 1964. O crescimento excepcional de Aécio Neves nas eleições fez parte dessa vaga deixada pela esquerda e exprimiu um desejo de mudança, só que pela direita. Ele é o representante direto da oligarquia financeira, capitalista, parasitária, defensor de uma lógica alinhada com o neoliberalismo, os interesses americanos. Ainda assim, o que acontece no Brasil não é nada comparável com a Europa. 
A situação da Europa é diferente de boa parte da América Latina. Como o senhor explica essa inversão? 
Os processos políticos da periferia do sistema sempre são mais avançados do que no centro. A América Latina sempre foi um lugar de efervescência social e política. Houve os regimes militares, mas é um continente em que as lutas sociais de esquerda não pararam. As experiências de agora são parte dessa história. Na Europa, infelizmente, a social democracia aderiu ao neoliberalismo em quase todos os países. Na França, a situação é desastrosa, fico até com inveja de vocês que vivem no Brasil, onde podem escolher entre a centro-esquerda e a direita. Fora a Grécia e a Espanha, o que se vê no restante da Europa é o reforço da direita nacionalista, racista, xenofóbica, anti-imigrante, antissemita, anticigano. Uma situação em que crise social, política e econômica se combinam.

Existe uma hipótese que explique esse avanço conservador?
Alguns, na esquerda, acham que tudo se explica pela crise econômica, que começou em 2008 e provocou desemprego, crise, enfim, uma situação social dramática. Isso explica em parte, mas não é suficiente porque na Grécia e Espanha, países mais afetados pela crise, o cenário é outro. Na Grécia, a esquerda radical é mais forte, e na Espanha, a direita quase não existe. Por outro lado, em países como Áustria e Suíça, que não foram afetados pela crise, a extrema direita é forte.

No Brasil, as igrejas evangélicas entraram para o debate. Elas são relevantes para se pensar a sociedade brasileira?
Eu me limitei a estudar o cristianismo da libertação, então não sou muito competente nisso. Mas minha impressão é que, à medida que a Igreja Católica foi desautorizando a Teologia da Libertação, as comunidades de base, etc., etc., ela criou uma espécie de vazio, que foi ocupado pelos evangélicos. Os evangélicos são, no fundo, uma religião mágica. Eles acreditam que, fazendo certos rituais, orações ou mesmo dando dinheiro para a igreja, terão seus problemas resolvidos. Isso, para parte da população, sempre foi assim. Mas devemos reconhecer que os evangélicos, pela ética protestante, calvinista, impõem uma série de proibições aos fiéis: não podem consumir álcool, drogas, ir a prostíbulos, jogar cartas. E isso melhora a situação da família, é fato. Por outro lado, essas igrejas são conservadoras, intolerantes, fundamentalistas e, na maioria das questões sociais, regressivas. Além do quê, desenvolvem uma pretensa teologia da prosperidade que faz elogios ao capitalismo, ao neoliberalismo, ao mercado e ao consumo, que é bastante negativo.

A busca pela religião não seria um sintoma de que, no Brasil, o processo de ascensão de renda relativa, mas importante, de parte da população, não reflete em qualidade de vida melhor?
Hesito fazer diagnósticos sobre o Brasil porque moro em Paris há anos. No entanto, acho que houve uma mudança substancial da situação das camadas mais pobres da população nos últimos 12 anos, só que nos limites do sistema. A lógica do governo brasileiro é o que chamo de social liberalismo: fazer tudo o que for possível pelos pobres com a condição de não mexer nos privilégios dos ricos. Por exemplo, dá uma ajuda para a agricultura familiar, que é pequena, mas não mexe no agronegócio. Essa é a contradição. Outro problema é que houve visão desenvolvimentista nesse governo que jogou tudo no agronegócio, nos bancos, nos subsídios. E os serviços públicos, que em boa parte foram sucateados ou privatizados, ficaram em terceiro ou quarto lugar. Esse é um problema sentido pela maioria da população a partir do momento em que já não está mais na miséria mais baixa. O sujeito consegue sobreviver, se alimentar, o que é um progresso, consegue ter um emprego, precário, mas tem. Só que sente que a saúde funciona mal, que a educação continua a ser um privilégio, que o transporte público está caríssimo. Tudo isso provoca insatisfação. Agora não acho que é daí que chega o sucesso dos evangélicos.

Em seu mais recente livro, A Jaula de Aço, o senhor propõe uma recuperação de Max Weber como um crítico do capitalismo, e não simplesmente como um sociólogo da razão?
Weber era um sociólogo objetivo, livre de juízo de valor. É um liberal burguês, mas também um crítico da civilização. Ele faz parte de uma corrente na Europa central que se chama pessimismo cultural, em que intelectuais enxergam o desenvolvimento da civilização capitalista industrial moderna como negativa. Esse pessimismo cultural tem variantes reacionárias, variantes de esquerda, caso de Walter Benjamin, e tem Weber, que não é de extrema direita nem de esquerda, mas um pessimista cultural resignado. Ele acha que o capitalismo é uma fatalidade, sem muita saída. Ao mesmo tempo, considera o capitalismo um sistema que está acabando com a liberdade dos indivíduos. Esse é o paradoxo. É um liberal individualista e, em nome da liberdade individual, critica o capitalismo. Diz que o sistema capitalista é um universo total, no qual forças impessoais, do mercado, dominam a vida dos indivíduos. E não só daqueles que participam da atividade econômica, todos têm seus destinos determinados por essas forças impessoais que, de maneira férrea, coercitiva, determinam os destinos dos indivíduos: se vão ter emprego ou não, se estarão na miséria… Ele tem uma fórmula para resumir isso, que é “o capitalismo é uma escravidão sem mestre”. Quer dizer, um regime tão duro de dominação como a escravidão, só que não tem mestre, um proprietário de escravos. Isso configura o que ele chama de habitáculo duro como aço. A expressão jaula de aço entrou na linguagem, e a usamos dessa forma.

A ideia de escravidão sem mestre lembra o conceito marxista de sujeito automático do capital, em que indivíduos são suportes do capital, e não o contrário, o que mostra proximidade entre Marx e Weber. Mas não se trata de dizer que Weber é um marxista.
Não, Weber não é marxista por inúmeras razões. A metodologia dele é neokantiana, não dialética. Ele é um nacionalista, Marx é um internacionalista. Weber é antissocialista. Mas o diagnóstico que faz sobre o que é o capitalismo e como ele funciona tem muitas afinidades. Em certos momentos de A Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo, Weber usa fórmulas marxistas, que ajudaram os empresários capitalistas a explorar os trabalhadores. Para usar a linguagem marxista, extrair a mais-valia. Em última análise, o que preocupa Weber é a liberdade do individuo, enquanto Marx pensa mais em termos da opressão de uma classe, a trabalhadora. A grande diferença é que Weber é um fatalista resignado, que acredita, seguindo Nietzsche, que o herói moderno é aquele que aceita o seu destino. Ele não vê saída, enquanto Marx acredita que existe um martelo, que é a luta de classe, que dá para quebrar a jaula de ferro e sair para fazer outra coisa, uma sociedade alternativa. Acho que essa é a grande diferença entre eles.

Jaula de aço é ou não um conceito científico?
É uma alegoria de aspecto literário, não um conceito científico no sentido habitual, que procura descrever a situação dos indivíduos na sociedade capitalista moderna. Uma alegoria no sentido que Walter Benjamin dá para a alegoria, uma visão das faces hipocráticas da história. Benjamin acrescenta que a alegoria percebe a história como uma paisagem petrificada. E o curioso é que Weber tem uma frase em que diz nosso futuro, se continuar esse sistema, vai ser uma petrificação mecanizada, uma relação curiosa entre ele e Benjamin. Mas o que Weber quer dizer em A Ética Protestante, que eu discuto no meu livro, é a ordem econômica capitalista, que é a jaula de ferro. Essa crítica não é bem a de Marx, diria que é complementar.

Apesar da teoria da resignação, Weber também lutava por valores políticos, como liberalismo, nacionalismo alemão. Como o senhor vê isso?
É uma das inúmeras contradições de Weber. Mas isso não é tão contraditório quando nos damos conta que ele não vê alternativa ao capitalismo. Em sendo assim, já que esse é o jogo, ele quer que a Alemanha ganhe o jogo, que seja uma grande potência moderna, industrial e, portanto capitalista. Por outro lado, Weber só entrou mesmo na política no último ano de sua vida, quando participou da fundação do Partido Democrata, em 1919. Antes disso, atuou nas margens, emitiu opiniões, participou de reuniões protestantes, escrevia artigos, mas não tinha uma atividade política. Procuro mostrar, no meu livro, que, no finalzinho de A Ética Protestante, Weber, quase a contragosto, abre uma janela pequena para uma eventual saída, que não é absolutamente socialista. Diria que é mais romântica por que ele fala que o capitalismo está no levando a um mundo de especialistas sem coração e sem espírito, que são valores românticos.

A saída para a jaula de aço seria o ecossocialismo?
Estou convencido, já faz alguns anos, que o socialismo só terá futuro no século 21 se levar a sério a questão da ecologia e vice-versa. Ou seja, a ecologia só estará à altura dos desafios se for uma ecologia socialista. O ecossocialismo parte da ideia de que a crise ecológica, que já está em curso, nos leva em direção a uma catástrofe ecológica sem precedente na história da humanidade em poucas décadas. Isso significa que o calor que estamos sentindo esses dias em São Paulo vai ser brincadeira de criança, se comparado ao que vai acontecer nos próximos anos. O gelo dos polos, que já começou a derreter, vai derreter em grande escala, e o nível do mar vai subir. E basta subir um metro para as principais cidades da civilização, Veneza, Rio de Janeiro, Amsterdã, Nova York e Londres, fiquem debaixo da água. Essa situação é resultado dos gases produzidos pelas energias fósseis, e o capitalismo funciona há três séculos na base das energias fósseis, que são as mais rentáveis. As outras energias podem ser até utilizadas episodicamente, mas não são competitivas e, portanto, não interessam. Daí a busca desesperada por mais petróleo. Essa é a lógica do sistema.

Em certa medida, a crise ecológica é mais grave do que a econômica?
A maior parte dos meus amigos marxistas não acha isso, eles estão mais preocupados com a crise econômica, o que é normal porque a crise ecológica é algo novo. Mas eu estou convencido disso. Marx, Engels, Lenin, Trotsky não tinham essa preocupação. Marx tinha uma coisinha, mas não era tema central. Para muita gente, a ficha ainda não caiu ou então toma conhecimento da questão, mas não sabe como lidar com ela. Mas a tendência do sistema é de expansão, o capitalismo só existe com expansão, crescimento, produtivismo, consumismo. Dizemos que a alternativa tem de ser radical e, se a raiz do mal é o sistema, então buscamos uma alternativa anti-sistemica, que teria de ser uma alternativa socialista. No entanto, teríamos de repensar o socialismo, não poderia ser aquele que acabou com a queda do muro. Tem de ser um socialismo novo, do século 21, democrático, libertário e ecológico. Precisamos repensar toda a questão do aparelho produtivo, das forças produtivas, da planificação para termos outra relação com o meio ambiente.

Algum país pratica o ecossocialismo?
Por enquanto, o ecossocialismo é uma utopia, no sentido estrito da palavra. Mas existem avanços. O presidente da Bolívia, Evo Morales, tem essa preocupação. Na conferência sobre o clima em Copenhague, houve uma manifestação de cem mil pessoas, eu estava lá, e o único chefe de Estado que se solidarizou com a manifestação foi ele, por quem tenho muito respeito. O ecossocialismo não vai cair do céu, mas a luta tem de começar. O Equador teve uma experiência interessante no Parque Nacional Yasuní, que tem uma biodiversidade incrível e onde, há séculos, vivem comunidades indígenas. Só que lá também tem muito petróleo debaixo da terra, e as companhias petrolíferas querem autorização para tirar o mato, como chamam a floresta, e procurar o petróleo. Os indígenas resistiram. Depois, eles e os ecologistas fizeram uma proposta de deixar o petróleo debaixo da terra e exigir dos países ricos, que pretendem lutar contra a mudança climática com esse negócio de bolsa dos direitos de emissão, que não dá resultado nenhum, indenizem o povo do Equador pela metade do valor desse petróleo que não vão queimar. O governo de Rafael Correa assumiu a proposta. Só que os países ricos, com poucas exceções, não manifestaram interesse e, infelizmente, o governo abandonou o projeto no ano passado.

Há outros exemplos?
Não dá para proibir as pessoas de andar de carro, mas é possível criar condições para que as pessoas tenham menos vontade de usar o automóvel. Criar corredores de ônibus é uma maneira de fazer isso. Outra é o transporte gratuito, há estudos feitos em vários países da Europa que mostram que o transporte de qualidade e gratuito leva muitas pessoas a usar menos o automóvel. Daí apareceu a proposta social, no Brasil, do passe livre. É social porque responde ao problema da população pobre, que não consegue pagar a tarifa, e cria condições, não imediatamente, mas a tempo para reduzir a circulação de automóveis. Essa é uma prefiguração do que poderia ser o ecossocialismo.

Na França, existe o movimento pelo crescimento zero.
É o decrescimento econômico da produção e do consumo. Nós, do ecossocialismo, temos muitas afinidades e algumas divergências. Compartimos a crítica à ideologia do crescimento. Nosso desacordo é o conceito de decrescimento, que dá ideia de uma alternativa quantitativa. Nós, do ecossocialismo, achamos que é preciso ter uma visão qualitativa da alternativa porque há coisas que não queremos reduzir, queremos suprimir. Precisamos de submarino atômico? De publicidade para explicar que o chocolate x é mais gostoso do que o y? Há toda uma lista de coisas a serem suprimidas. Outras precisam ser reduzidas, como a produção de automóveis. E outras ainda precisam ser desenvolvidas, como a agricultura orgânica.

É viável sustentabilidade e desenvolvimento?
A palavra sustentabilidade está desgastada. O que pensamos é que os países do terceiro mundo, especialmente, precisam se desenvolver de maneira ecologicamente sustentável, respeitando os equilíbrios ecológicos do meio ambiente. Não somos contra o desenvolvimento, mas queremos outro tipo de desenvolvimento, que não é esse adotado pelos países capitalistas até agora. Precisamos inverter prioridades para fazer a economia funcionar em outras bases.