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terça-feira, agosto 18, 2020

A percepção da educação desde a perspectiva sociológica - Parte 2

 

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A sociologia da educação de Durkheim

24A sociologia da educação de Durkheim assenta suas raízes nas condições culturais e sociais da III República francesa, em geral, e na tradição positivista de Comte e no conflito político-ideológico entre o Estado laico e a igreja integrista católica, em particular.

25Durkheim ocupa-se, pela primeira vez e de forma sistemática, na história da construção teórica dos fundamentos básicos da sociologia da educação e da sociologia do sistema de ensino, mediante o delineamento de seis linhas mestras:

1. Natureza e funções sociais da educação;

2. Bases gerais da sociologia da educação;

3. Sociologia da escola como meio moralmente organizado e como microcosmo social;

4. Sociologia histórica do sistema de ensino;

5. Sociologia da reforma do sistema educativo;

6. Sociologia do currículo.

26O pensamento de Durkheim contém, sem dúvida, elementos teóricos e materiais críticos fundamentais para a construção da ciência social, em geral, e da sociologia da educação, em particular. Neste aspecto, é-lhe reconhecida a elaboração de um pensamento sistematizado no campo da educação.

Natureza e funções da educação

27Antes de qualquer consideração relevante sobre o pensamento socioeducativo de Durkheim, vamos apoiar-nos neste autor para a primeira aproximação ao conceito de educação. A educação está intrinsecamente ligada à prática cultural, e é, por isso, considerada uma coisa humana. Fundamenta-se na acção reflectida sobre um ser humano, em desenvolvimento biológico e/ou social, por outro ser humano adulto, visando incutir no educando os elementos culturais identitários, como, por exemplo, saberes, maneiras de pensar, sentir e agir, tanto técnicas como morais, que as normas sociais consideram como aceites e desejáveis. Segundo Durkheim,

«A educação não é [...] mais do que o meio através do qual [a sociedade] prepara no espírito das crianças as condições essenciais de sua própria existência [...]. A educação é a acção exercida pelas gerações adultas sobre aquelas que ainda não alcançaram o grau de maturidade necessário para a vida social. Tem por objectivo suscitar e desenvolver na criança um certo número de estados físicos, intelectuais e morais que exigem dela tanto a sociedade política no seu conjunto como o meio ambiente específico a que está especialmente destinada» (DURKHEIM 1975: 52-53).

28A educação, além de libertar o homem da sua essência natural, é sinónima de humanização. O homem não nasce feito, faz-se. Faz-se a si mesmo, mas só na medida em que é produto da sociedade, dos demais. Quer dizer, enquanto domina seus instintos animais e interioriza a cultura, e com ela adquire novas qualidades físicas, mas sobretudo um determinado pensamento e um ethos, um sistema de hábitos mentais e práticos, uma concepção da realidade, uma forma de vida, uma moral concreta e uma formação pré-profissional. A educação não é criação espontânea do indivíduo, mas produção do mesmo. Porém, produção cultural e não meramente natural. Produção histórico-social do homem: porque a educação varia com cada cultura histórica e segundo o grupo social de que se trate (MIR 1990).

29Assim, sem a sociedade, sem os demais homens, os vivos e os mortos, sem a tradição cultural e o presente histórico-social, o indivíduo humano não pode realizar-se como homem. Por isso, a educação inculca a realidade e o sentimento do poder e da autoridade do meio social ou da cultura do meio comum. Nessa mesma medida, a educação não é simples comunicação inter-individual, mas imposição, coerção e dominação. Supõe uma disciplina física, intelectual e moral, sua interiorização e a do sentimento, e a ideia da autoridade e do dever. As relações educativas são sempre relações de autoridade e de poder, e, nessa medida, de dominação. Mas de dominação do indivíduo animal pelo meio sociocultural; quer dizer, por si mesmas essas relações educativas não têm porquê implicar a dominação, o conflito ou a exploração de uns homens por outros.

30Na verdade, acontece que, à medida que se complexifica a realidade social, essas relações se tornam conflituosas e a socialização se realiza sob o domínio económico, político e ideológico de determinados grupos e classes sociais, com a resistência relativa dos demais. Durkheim não fala claramente destas questões quando se debruça sobre a educação e o sistema escolar em geral; no entanto, elas constituem a matriz explicativa mais profunda do tipo de análise que encontramos em seus cursos sobre A evolução pedagógica em França. Para o autor,

«A educação consiste numa socialização metódica da jovem geração. Pode dizer-se que em cada um de nós existem dois seres, mesmo quando inseparáveis a não ser por abstracção, que não deixam de ser distintos. O primeiro está constituído por todos os estados mentais que não se referem mais do que a nós mesmos e aos acontecimentos da nossa vida privada: é o que se poderia muito bem denominar o ser individual. O segundo é um sistema de ideias, de sentimentos e de costumes que exprimem em nós, não a nossa personalidade, mas o grupo ou os grupos diferentes em que estamos integrados; tais são as crenças religiosas, as opiniões e práticas morais, as tradições nacionais ou profissionais, as opiniões colectivas de todo o tipo. Seu conjunto constitui o ser social. Formar esse ser em cada um de nós, tal é o fim da educação» (DURKHEIM 1975: 53-54).

31Efectivamente, esta socialização do indivíduo se produz sempre em condições culturais, históricas e sociais determinadas, numa sociedade e em grupos sociais concretos. O processo educativo consiste na produção de um complexo de hábitos mentais, mediante uma socialização metódica diferencial, porque cada indivíduo vive numa determinada sociedade histórica e forma parte de uns grupos sociais ou de outros, tais como, de género, de status, de raça, de etnia ou de classe, fundamentalmente. Embora Durkheim não insista explicitamente nisto, há que distinguir, portanto, entre aqueles mecanismos sociais que se orientam à reprodução universal e «desinteressada» da educação e da cultura, e, obviamente, os outros, aqueles que servem para inculcar uma ideologia determinada, ou para reproduzir a desigualdade social e cultural, e que se encontram sob o controle dos grupos sociais dominantes.

32Entendido em um sentido social mais amplo, o sistema educativo de uma sociedade modela constantemente a mente dos indivíduos que a constituem. E sua função principal consiste na inculcação de uma determinada visão da realidade — entendida como a do ambiente natural e a do meio social —, e do lugar que cada indivíduo ocupa nela, assim como de todo um conjunto de atitudes e de hábitos morais coerentes com dita visão. Tudo isto, mais ou menos criado e enriquecido criticamente por cada indivíduo, acaba constituindo o núcleo objectivo de sua personalidade. Ora, quando a estrutura social é claramente desigual, os mecanismos sociais educativos inculcam também algum tipo de ideologia, reproduzem a divisão social da cultura e do trabalho, e, consequentemente, contrapõem a visão dominante da cultura como a única realmente legítima à dos grupos sociais subordinados, como inferior e relativamente ilegítima. Apesar de Durkheim não discorrer com abundância sobre esta segunda perspectiva da educação, quando analisa sua problemática de forma genérica e sistemática, tem ideias muito claras a respeito dela: a leitura de sua história social do sistema de ensino e da pedagogia ocidental, sobretudo o caso francês, constitui precisamente a melhor prova disso.

Possibilidades objectivas de uma ciência social da educação

33Em primeiro lugar, debruçando-se sobre a possibilidade objectiva de uma ciência social da educação, Durkheim afirma sua necessidade, precisa seu objecto central — a saber: a génese, o funcionamento e a evolução do sistema de ensino e das doutrinas pedagógicas —, e fixa sua terminologia básica.

34A educação é um facto. Conhecer, compreender o que existe, é a função própria da ciência. Conhecer a educação será, portanto, a tarefa da ciência da educação. E, dado que a educação é um facto, pode haver dúvidas sobre a possibilidade dessa tarefa. Se a sociologia é saber da sociedade e das instituições sociais em geral, a sociologia da educação será o saber da educação e das instituições educativas, de sua articulação conjunta. Durkheim não usa a expressão «sociologia da educação»: a questão do nome parece-lhe algo secundária. Mas, em contrapartida, não tem a menor dúvida sobre a possibilidade objectiva deste novo saber: as leis da psicologia são irredutíveis às da psicologia do indivíduo, e o carácter externo e a homogeneidade real e lógica dos factos educativos como factos sociais permitem a aplicação rigorosa das regras do método sociológico. Por adição, a sociologia da educação não é só algo que se pode construir, mas é cada dia mais necessária, não só para os educadores, mas também para todos, para a sociedade em geral, enquanto instrumento eficaz para fazer frente à crise da sociedade contemporânea.

35O sistema educativo é o conjunto articulado de práticas educativas de uma sociedade. Estudar a génese e o funcionamento do sistema educativo, assim como as doutrinas pedagógicas correspondentes a essa génese e a esse funcionamento, é o objecto principal da sociologia da educação. Tudo isso, em estreita relação com o sistema social — do qual o sistema educativo é parte, isto é, um subsistema —, e com uma atenção muito especial à anomia social e às suas principais manifestações. Durkheim conclui:

«Eis aqui, pois, dois grupos de problemas cujo carácter puramente científico é incontestável. Uns são relativos à génese; os outros, ao funcionamento dos sistemas de educação. Em todas essas investigações se trata simplesmente de descobrir coisas presentes ou passadas, ou de verificar suas causas, ou de determinar seus efeitos. Constituem uma ciência; eis aqui o que é, ou, melhor dito, eis aqui o que seria a ciência da educação» (DURKHEIM 1975: 81).

36Em segundo lugar, Durkheim critica a orientação psicologista da pedagogia tradicional (embora sublinhe a necessidade da fundamentação psicológica da didáctica), assim como sua natureza ideológica e normativa, e, em compensação, insiste na necessidade da fundamentação sociológica da pedagogia moderna.

37Naturalmente, para Durkheim, a pedagogia deve abandonar a orientação psicologista tradicional e substituí-la por outra fundamentada na sociologia. Mas, isso não quer dizer que a psicologia não tenha uma função pedagógica. Como ciência da consciência individual é essencial para a didáctica. A sociologia proporciona o conhecimento da sociedade, que constitui a chave mestra para o conhecimento da escola. Depois da descoberta da sociedade e das necessidades sociais pela sociologia, a psicologia identifica os procedimentos mais idóneos para transmitir esses conhecimentos às crianças. Para o autor,

«Portanto, é sempre ao estudo da sociedade que devemos referir-nos; é unicamente aí onde o pedagogo pode achar os princípios de sua especulação. A psicologia poderá indicar perfeitamente qual é o melhor procedimento que se deva adoptar para aplicar à criança esses princípios uma vez que tenham sido estabelecidos, mas, em compensação, o que não poderá é fazer-nos descobri-los» (DURKHEIM 1975: 115).

38O psicologismo é uma consequência dos equívocos da pedagogia tradicional: da ilusão de autonomia da consciência individual e da consciência em geral, e da interpretação psicologista das relações educativas como relações puramente inter-individuais. Daí também a urgência da substituição deste pedagogismo utópico por uma prática pedagógica baseada na ciência social da educação.

39A pedagogia não é pura teoria, nem pura prática; nem só ciência, nem exclusivamente arte. É uma mescla de teoria e prática, algo que se encontra a meio caminho entre a ciência e a arte. Mas, para ser efectiva nas condições críticas da sociedade actual, dita mescla deveria fundamentar-se na ciência social da educação. Porém, esta encontra-se ainda praticamente em sua infância: «A pedagogia não é mais do que a reflexão aplicada tão metodicamente como se possa aos temas da educação» (DURKHEIM 1982: 29).

40O discurso da pedagogia sempre foi um discurso normativo. Refere-se ao dever ser, não ao ser, à realidade da educação. As doutrinas pedagógicas são, na realidade, a expressão dos desejos dos humanos sobre a base de certos interesses sociais práticos, materiais. São racionalizações ideológicas impostas por determinadas condições sociais e históricas. Com frequência aparecem como uma variante da literatura utópica, que se produz como forma de expressão de determinadas crises sociais. Tanto as pedagogias dominantes como as revolucionárias são igualmente ideológicas e normativas, e opõem-se à objectividade e à imparcialidade ou neutralidade científicas na medida em que os interesses que as condicionam não coincidem com os das classes sociais mais progressistas de cada momento e com os do conjunto da sociedade em geral.

41A organização económica e política da sociedade, quer dizer, a produção e a distribuição da riqueza e do poder entre os diversos grupos sociais, fundamenta-se no seu sistema educativo e nos seus ideais pedagógicos, assim como na mobilidade dos indivíduos. Um determinado ideal pedagógico revela a visão sobre os objectivos da educação de um grupo social concreto numa sociedade e num dado período de tempo. E, nem sequer as técnicas pedagógicas são neutras e objectivas, mas estão em função do tipo de homem que cada sociedade pretende criar ou que cada grupo social pretende modelar. Isto é algo que Durkheim ilustra com relativa profusão, começando por um dos casos históricos mais paradigmáticos: o da educação total do monacato cristão na Antiguidade, tão imitado muito cedo na história social do cristianismo, incluindo o presente. Em geral, «Cada tipo de povo tem uma educação que lhe é própria e que pode servir para defini-lo ao mesmo tempo que sua organização moral, política e religiosa» (DURKHEIM 1975: 102).

Função da educação escolar

42Teoricamente, num contexto social ideal fechado e puramente conservador, o sistema de ensino pode funcionar como um mecanismo social eficaz em ordem à inculcação de uma ideologia e um ethos determinados, à reprodução da desigualdade estrutural e à legitimação de grupos dominantes sem nenhum tipo de contestação ou de resistência. Porém, a experiência social tem mostrado que o mais frequente é o conflito entre os grupos sociais dominantes e os subordinados, e a consequente mudança social. Este conflito se reproduz também no seio do sistema de ensino, dando origem a diversas formas de contestação e de resistência. Além disso, é necessário considerar a correlação objectiva entre a divisão do trabalho e a desigualdade social em geral e a estruturação diferencial do ensino escolar. A socialização escolar implica até certo ponto a homogeneização dos alunos, por meio da inculcação de uma cultura universal, mas também sua diferenciação mediante a transmissão de uma cultura distinta (particular), em função da divisão social do trabalho e das distintas formas de desigualdade social, embora Durkheim se refira explicitamente apenas à desigualdade relacionada com a divisão social do trabalho. Segundo o autor,

«É a sociedade que, para poder subsistir, necessita que o trabalho se distribua entre seus membros e se distribua entre eles de tal forma e não de tal outra. Este é o motivo pelo qual a sociedade se preocupa em preparar, através da educação, os trabalhadores especializados de que está necessitada. Por conseguinte, é para ela e também por ela que a educação se foi diversificando [...]. No entanto, seja qual for a importância dessas educações especiais, não se poderia rebater o facto de que não constituem toda a educação. Inclusive pode dizer-se que por si mesmas não se bastam; em qualquer parte que elas se encontrem não divergem umas das outras mais do que a partir de um certo ponto próximo do qual se confundem. Todas elas assentam sobre uma base comum [...]. Inclusive, essa base comum é a que passa geralmente a ser a verdadeira educação [...]. Os sistemas educacionais [...] estão tão obviamente vinculados a sistemas sociais determinados, que resultam inseparáveis deles» (DURKHEIM 1975: 100-101).

43A escola moderna, o sistema escolar como tal, funda suas raízes no modelo cristão medieval, que, por sua vez, teve sua génese no monacato do século VI e no sistema de educação total: material e espiritual, ideológica e moral, profissional e quotidiana. Por sua complexidade e seus conflitos estruturais, a actual sociedade da informação e do conhecimento precisa de um modelo de educação relativamente similar, mas essencialmente crítico e pluralista. Porque, apesar das diferenças históricas e objectivas inegáveis, suas principais funções sociais são equivalentes: a universalização do comportamento individual e a diferenciação profissional; a homogeneização e a diferenciação sociais, em geral. No tocante a outras considerações, hoje como ontem, o mais importante continua sendo a integração dos diferentes indivíduos e grupos sociais, o domínio das ideias, os sentimentos e as linhas de comportamento moral solidários, em contraposição aos particularistas e exclusivos, potenciados pelo neoliberalismo.

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