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terça-feira, agosto 18, 2020

A percepção da educação desde a perspectiva sociológica - Parte 3

 Sociologia e Educação: Karl Mannheim e suas contribuições para a ...

A sociologia da educação de K. Mannheim

44Karl Mannheim esboçou a partir de posições teóricas e políticas o esquema geral de uma sociologia da educação, de um novo sistema de ensino, de um curriculum e de uma didáctica muito actuais.

Princípios de uma política educativa democrática e eficaz

45A sociologia da educação de Mannheim não se limita estritamente à sociologia do sistema de ensino, enquadra-se na estrutura definida pelos seus pressupostos epistemológicos básicos e por sua visão pessoal dos princípios fundamentais de uma política educativa democrática e eficaz. O desenho desses princípios resume-se em: 1) educação para a mudança, garantida por uma formação básica rigorosa e comum; 2) educação para todos, o que implica a recusa decisiva do biologismo sociopedagógico e da lógica de «a barreira e o nível», própria da classe académica, a potenciação da igualdade de oportunidades e a democratização — não ao nivelamento para baixo — de todo o sistema; e 3) educação permanente em estreita relação com a realidade e a mudança social.

46Deste modo, a educação escolar, concretamente, já não pode se considerar «só como uma introdução a uma sociedade dinâmica, mas como um agente das mudanças sociais» (MANNHEIM 1974: 297). Quer dizer, deve transmitir aos jovens uma síntese da experiência tradicional e, ao mesmo tempo, pô-los também em condições de construírem por si mesmos uma nova sociedade, proporcionando-lhes, para o efeito, uma concepção do ambiente natural e do meio humano o mais científica possível, que lhes permita entender seu lugar na realidade e comprometerem-se responsavelmente na resolução dos problemas mais importantes do presente.

47A nova educação há de ser autenticamente democrática, para todos. Mas, para tal, é necessário recusar a selecção psicométrica e o biologismo ideológico em geral, tratando de proporcionar, em compensação, a toda a população as mesmas oportunidades educativas. O autor fala, pois, de «democratização, não a nivelação, da educação», isto é, «ampla participação do povo na vida cultural [...] e supressão do complexo de inferioridade que as sociedades plutocráticas e autoritárias cultivam tão cuidadosamente» (MANNHEIM 1974: 123-133).

48Para Mannheim, é por conta do controle do sistema académico-profissional tradicional e da imposição da lógica de «a barreira e o nível» que o «capital cultural» condiciona a educação social tanto como o capital económico, na medida em que «os interesses criados pelas classes educadas na limitação da educação superior são, pelo menos, tão poderosos como os interesses criados pelo capital» (ibidem: 322).

49Portanto, a educação democrática, para a mudança e para todos, deve ser também uma educação permanente e de qualidade. Posto que «se há de transformar a educação na sólida base da sociedade, deverá prever-se a continuidade de sua organização» (ibidem: 322).

Necessidade de uma educação democrática, permanente e de massas

50Para Mannheim, a «educação social» implica a rotura clara com o sistema de ensino tradicional e a necessidade de sua reforma radical. Esta passa, forçosamente, pela rotura crítica com a escola elitista e formalista tradicional, e pela necessidade de garantir a qualidade do ensino como critério guia básico da nova política educativa e, também, como prova social de uma democratização efectiva.

51Tal como Durkheim, Mannheim concebe também a escola moderna como um meio moralmente organizado e em relação coerente com todo um conjunto de instituições, produto e garantia social do «planeamento para a liberdade», com a contribuição do sistema educativo ao consenso político próprio da «democracia militante», que deve se completar com a selecção democrática dos cidadãos mais aptos para exercer as principais funções sociais directivas. Pois:

«Não é possível uma sociedade sem grupos dirigentes responsáveis, e [...] o remédio social diante a uma oligarquia não consiste em substituí-la por outra nova, mas em facilitar o acesso às posições de decisão aos mais aptos dentre as camadas inferiores» (MANNHEIM 1961: 101).

52Segundo Mannheim, o sistema escolar da sociedade vitoriana era essencialmente elitista, próprio de uma «democracia comercial» para minorias e de uma época de prosperidade económica e consenso social. Daí sua concepção escolástica e apartada da vida do estudo e da aprendizagem: o império do exame e do culto à memória, a erudição e o formalismo pedagógico. Ao contrário, o que hoje se necessita é de um sistema de ensino realmente democrático, que garanta a educação permanente e progressiva de todos os cidadãos, em estreita relação com a complexidade característica da sociedade da informação, global e de massas do nosso tempo.

53No entanto, a renovação parcial e relativamente autónoma do sistema de ensino não é suficiente; para consolidar-se, deve apoiar-se na reorganização democrática geral do conjunto da sociedade:

«No passado existia uma separação absoluta entre o lar e a escola. Hoje, em compensação, leva-se a cabo tentativas de juntar os pais e os professores e coordenar desta maneira as influências vindas da escola com as que actuam no lar» (MANNHEIM 1961: 79).

54O sistema de ensino não deve se limitar a preparar cada nova geração para sua integração na vida profissional e na sociedade em geral, mas também tem de nuclear as experiências sociais que têm como objectivo básico a educação permanente dos cidadãos. Porque, hoje, a velocidade com que as mudanças se sucedem, alimentadas pelas aspirações tecnológicas e sociais, a rapidez com que a informação se torna obsoleta, não só não permitem um aprender para a vida, como também deslocam os objectivos da educação, na medida em que a sociedade se torna pouco estável, assim como suas demandas. Por isso, a educação de jovens e adultos não deve ser concebida nem funcionar na prática como sucedâneo da universidade tradicional, mas como um mecanismo social eficaz para a actualização profissional, científica, democrática e cultural de todos os cidadãos, prestando uma atenção muito especial à difusão sistémica das visões científicas de conjunto sobre a natureza e a sociedade. Para Mannheim,

«A educação de adultos não continuará sendo uma espécie de substituto da educação universitária para os trabalhadores e empregados. Deverá dedicar-se a ajudar todos os cidadãos a adaptarem-se inteligentemente às exigências de mudança de uma sociedade nova [...] se a educação de adultos trata verdadeiramente de ajudar a criar cidadãos reflexivos, que se preocupam pelos problemas públicos em todas as actividades da vida, bem equipados para julgar os problemas correntes da democracia, terá de deixar de seguir os abalos superficiais do momento» (MANNHEIM 1974: 305-306).

55Relativamente à reforma, Mannheim tinha consciência de que o êxito de qualquer processo de reforma educativa real (e não meramente retórica) que intentasse implementar se sujeitaria à vontade do professorado em participar dela. Para ele, o novo sistema de ensino da «democracia militante» precisa de um professor capaz de renunciar a todo o tipo de dogmatismo ideológico e disposto a tudo fazer para entender estritamente a cultura actual, adoptar uma visão mais ou menos unitária e de conjunto da mesma, e passar um conhecimento especializado e uma formação integradora aos seus alunos. Mas, para isso, necessita conhecer com profundidade tanto o meio social de procedência dos alunos como a estrutura geral da sociedade em que têm de se integrar como profissionais e como cidadãos. Para tal, Mannheim propõe a inclusão, no plano curricular de formação inicial dos professores, de matérias de tronco comum, como a psicologia, a sociologia geral, a sociologia da cultura e a sociologia da educação.

«Ou, para dizer em linguagem académica, o prévio: para ajudar a formação de uma educação à altura de nossos dias são necessários os seguintes cursos: 1) Sociologia da educação; 2) Ciência da conduta; 3) Sociologia da cultura; 4) Análise da estrutura social» (MANNHEIM 1961: 86).

56Defensor da síntese da espontaneidade criativa e da disciplina inteligente como chave principal da nova pedagogia da «democracia militante», do «planeamento da liberdade» e do seu novo sistema de ensino, Mannheim critica ostensivamente a pedagogia autoritária, com o seu ideal da obediência cega, e as pedagogias liberal e libertária, por sua teoria da existência de uma natureza humana eterna e histórica e sua concepção da prática educativa em função da suposta espontaneidade total de cada indivíduo humano.

«Se a velha educação autoritária era cega às necessidades vitais e psicológicas da criança, o liberalismo do laissez faire perturbou o equilíbrio saudável entre o indivíduo e a sociedade…» (MANNHEIM 1961: 49).

«A teoria da educação liberal insistia em que os valores básicos e os objectivos da educação tinham carácter eterno e que o propósito final e exclusivo da educação consistia em fomentar o livre desenvolvimento da personalidade mediante a manifestação sem impedimento de suas qualidades inatas» (MANNHEIM 1961: 81).

57À semelhança de outros autores do seu tempo, como Gramsci, Mannheim é de opinião que o naturalismo rousseauniano deve situar-se no seu contexto sócio-histórico determinado, como produto lógico da reacção espontânea face ao domínio secular da pedagogia autoritária, embora tenha sido, na origem, uma atitude pedagógica progressiva. Em contrapartida, o caso dos movimentos de renovação pedagógica de inspiração rousseauniana (liberais ou libertários) é bem diferente. Além disso, denuncia os perigos da inculcação sistemática, da repressão autoritária e da obediência cega, que este tipo de tendências pedagógicas tenta passar a todo o custo através do seu cântico melódico dos valores da espontaneidade, da capacidade criativa e da experiência livre.

58A existência histórico-social destas tendências pedagógicas ultra-críticas é possível, precisamente, porque se trata de orientações teóricas que têm influências directas na educação social. Se ainda persistem é porque as minorias intelectuais que as alimentam se encontram relativamente protegidas das exigências mais comuns da existência social, enquanto se servem dessas posições ideológicas para cimentar seu individualismo imoderado, produzir sua identidade social e reproduzir sua situação relativamente privilegiada.

59A prática educativa sempre modela o tipo humano mais incoerente com a estrutura social. Não se trata de nenhuma obrigação de ter de optar entre a pedagogia extrema da obediência cega e a liberdade utópica. Trata-se, sim, de organizar a educação de modo que se logre a melhor combinação possível entre a espontaneidade criativa e a disciplina inteligente: a personalidade democrática. Quer dizer, há que educar, acima de tudo, para a solidariedade afectiva e a coesão social; e, enquanto isso, há que fomentar a liberdade de julgamento, o equilíbrio psíquico pessoal e, em geral, as qualidades que distinguem a personalidade independente. Naturalmente, o primeiro princípio deverá caracterizar os primeiros níveis básicos da educação, e o segundo, progressivamente, os níveis médio e superior.

60A democratização do ensino representa a possibilidade de uma autêntica revolução cultural, mas pode desaproveitar-se se não for cuidadosamente planeada. Não basta o desenvolvimento extensivo do sistema educativo moderno. O critério guia da sua democratização constitui a qualidade do ensino. E esta consiste em elevar sistematicamente o pensamento inferior ao nível superior, e não em nivelação para baixo. A reforma progressista do sistema de ensino deve garantir a qualidade, fomentar a progressividade e impedir a degradação do ensino. Porém, uma reforma demasiado rápida do sistema de ensino tradicional pode converter-se em uma fraude social (uma transformação social formal, aparente), que pode comprometer a cultura de uma sociedade determinada em geral.

Curriculum oculto e curriculum manifesto

61Apesar de hoje se falar pouco da necessidade de distinção entre aquilo que se ensina (os conteúdos sobre os quais repousa a instrução escolar) e a forma como se ensina (o modo como se passa os conhecimentos inerentes aos conteúdos), é algo bastante importante e, naturalmente, complexo. Na opinião de Mannheim,

«Tudo o que ensinámos e, mais ainda, a forma como ensinámos, tem um efeito determinado na formação do carácter [...] Sabemos hoje que o tipo de jogo que se proporciona e os detalhes íntimos da organização da escola são muito mais importantes do que os títulos que outorgamos a esses sistemas escolares. A organização social da escola, o tipo de "papéis" sociais em que se possa participar, o predomínio da competência ou da cooperação, e a existência de uma oportunidade maior para o trabalho em equipa do que para a tarefa solitária, todos são coisas que contribuem para o tipo de homem que há de formar-se em semelhantes situações» (MANNHEIM 1961: 81).

62Por um lado, o curriculum deve considerar os efeitos educativos do modelo de escola: hierárquico ou democrático; para a competição individualista ou para a cooperação. Deve também impedir que a escola funcione como um mecanismo de reprodução das desigualdades sociais, tirando partido do sistema de internato e das melhores lições da experiência histórica em geral, e das vantagens educativas do grupo de iguais. Por outro, é importante a forma de estruturação do que hoje chamamos curriculum manifesto. Uma estruturação excessivamente fragmentada e especializada priva o aluno da possibilidade de alcançar em algum momento uma visão suficientemente unitária e crítica do seu próprio meio. Porém, com uma estruturação coerente, unitária e integral, ocorre precisamente o contrário.

63Além disso, a formação plena da pessoa não se pode acautelar em absoluto com recurso a uma determinada disciplina curricular, mas que depende do funcionamento geral do curriculum escolar — oculto ou manifesto – e do conjunto da sociedade — da sua influência sobre os diversos grupos de indivíduos.

64Mannheim sublinha a eficácia pedagógica das «ideias directrizes» durkheimianas, quer dizer: dos conteúdos gerais essenciais e potencialmente mais unificadores. Fá-lo no contexto da denúncia da frequente confusão da tolerância e da objectividade com a neutralidade, por mais intensa que seja a obsessão política pelo consenso social. Segundo o autor,

«Nem a tolerância democrática, nem a objectividade científica exigem que deixemos de defender as posições tidas por verdadeiras, nem que se evite toda a discussão sobre os objectivos e valores finais da vida» (MANNHEIM 1961: 95).

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