* Paulo Reis
'Raras vezes a creação de uma cidade é resultado de causas fortuitas. Quer tenha sido rapida, quer lentamente desenvolvido, o grande centro de população é quasi sempre consequencia de circumstancias locaes favoraveis ao commercio, á industria, ou a uma e outra conjuntamente...' Luiz Raphael Vieira Souto
Inicio este ensaio com uma indagação: Que cidade queremos para os próximos anos, tendo em vista o seu processo de constituição física, social, política, econômica e cultural. As questões que hoje movem os urbanistas, sociólogos, geógrafos, economistas e historiadores estão contidas no tipo de cidade que temos e nos meios para superação dos problemas que são recorrentes, como violência, mobilidade, educação, saúde, moradia, esgotamento sanitário, lazer, cultura etc. Diante destas questões faz-se necessário uma reflexão acerca do processo histórico de construção da Cidade Rio, entendê-la sob o ponto de vista de sua totalidade é essencial para o debate que se coloca hoje sobre a Cidade que queremos.
1. O PORTO E A CIDADE
A região portuária é de grande importância para as reflexões acerca da questão da Cidade do Rio de Janeiro e seu processo histórico de transformação/modernização (1850-1920). A cidade pensada, a partir da segunda metade do século XIX, tem na região portuária sua maior preocupação que se revela no número de intervenções urbanísticas – o bota abaixo, reforma do porto, estruturação das linhas de bonde etc.
É uma região de grande densidade populacional e igualmente densa em volume de mercadorias que transitavam por este Porto, principalmente a partir da produção cafeeira do Vale do Paraíba, que em 1831 ultrapassou a produção do complexo açucareiro nacional, representando assim 26% do total das exportações do Brasil.
O complexo cafeeiro muda a Cidade do Rio de Janeiro, assim como o complexo açucareiro (1640-1690) e o complexo do ouro (1690-1790) igualmente mudaram a Cidade e sua gente . Seja do ponto de vista político com a transferência da capitalidade de Salvador para a Cidade Rio ou do territorial com o adensamento da população que traz reformas urbanísticas de caráter expansionista.
O complexo cafeeiro somado as políticas de fomento econômico do Império transformaram por completo o Porto e seu entorno, dando os contornos de uma ‘nova’ cidade que se espraiou em duas direções: a) São Cristóvão, Engenho Velho e Andaraí e b) Glória, Flamengo, Catete e Botafogo.
BENCHIMOL, em obra clássica sobre a temática, constata que na segunda metade do século XIX, o Porto do Rio de Janeiro já era um dos três mais importantes da América e o mais importante do Brasil. Assim sendo, não é por obra do acaso que a partir da década de 1850 houve um esforço por parte das autoridades políticas brasileiras em modernizar o Porto e, por conseguinte, a região do seu entorno, entendida como eixo dinâmico de expansão da Cidade e do Império.
Desde, pelo menos, a chegada da Família Real Portuguesa (1808) os Negociantes de Grosso Trato estabeleceram-se na praça mercantil do Rio de Janeiro, exercendo o controle do transporte de cabotagem, consolidando as ligações da Cidade Rio com as praças/portos da região sul e da região norte em um sistema agregador destes espaços. Soma-se ainda as tropas de mulas vindas de São Paulo, M5ato Grosso, Goiás e Minas Gerais que fazem do Porto do Rio o ponto de maior confluência de produtos do Império Português.
Cumpre exaltar que neste período há um processo de modernização da economia brasileira, consoante ao movimento mundial do capitalismo no que se convencionou chamar de 2ª Revolução Industrial. Podemos sintetizar esta modernização pela aprovação do Código Comercial de 1850 e a criação do segundo Banco do Brasil em 1853, tendo o empresário Irineu Evangelista (Barão de Mauá) como principal articulador do novo Banco e um dos grandes partícipes da construção do Código Comercial, junto com o ministro da Justiça Eusébio de Queirós. Cabe ainda ressaltar a Lei que impôs o fim ao trato negreiro em 1850, cujo autor é o mesmo Eusébio de Queirós Ministro da Justiça, com esta lei abriu-se o caminho para a modernização da matriz de trabalho brasileira, pari passo com o processo de transformações do modo de produção capitalista industrial em curso nas regiões mais dinâmicas economicamente (Inglaterra, França, EUA etc).
Com o fim do tráfico negreiro e a regulação comercial uma parte considerável do capital mercantil foi liberada para outras finalidades, como investimento em infraestrutura (logística para a produção e transporte do café), crédito para a produção agrícola, fomento de novas indústrias etc. A Lei de Terras de 1850 também contribuiu para esta segurança jurídica do complexo produtivo brasileiro, garantindo o fluxo de crédito para a expansão da produção cafeeira através de instituições bancárias nacionais e internacionais (principalmente inglesas).
Nas décadas de 1850 e 1860 a tônica será a modernização da Cidade Rio, com ênfase na região mais dinâmica economicamente: a zona central e portuária. Contudo, somente a partir de 1871, os primeiros resultados dos debates acerca da modernização da zona portuária saíram do papel com o lançamento da pedra fundamental do Armazém Docas D. Pedro II. Seguidamente, temos a instalação da Comissão de Melhoramentos em 1874, que veio atender a demanda por obras de modernização/adequação da cidade ao novo momento que se abriu. Havia capital e havia pessoas qualificadas para pensar a cidade, neste contexto de modernização.
Esta comissão foi formada sob os auspícios do ideal de higienização e limpeza das cidades, em conformação com o discurso europeu de cidade asséptica, racional, organizada, bonita, funcional e utópica (Hausmann). Fizeram parte desta comissão os engenheiros Jerônimo Rodrigues de Moraes Jardim, Marcelino Ramos da Silva e Francisco Pereira Passos.
2. A CIDADE E O CAFÉ: NOTAS ESPRESSAS
Havia um clima para 'modernizações' em todos os sentidos, incluindo as mudanças no campo urbanístico e logístico, que não previa apenas obras para o embelezamento e limpeza da cidade. Havia toda uma concepção de utilização racional dos espaços para incremento da economia, basilada então no complexo cafeeiro do Vale do Paraíba, que não viu uma modernização das técnicas produtivas, contudo a logística de transporte e acondicionamento foram amplamente modificados e melhorados dentro dos padrões internacionais exigidos à época. Estas modificações ou modernizações contribuíram diretamente na cadeia produtiva do café, resultando em mais rapidez, mais qualidade e mais lucratividade do produto da origem ao consumidor final.
Cabe frisar que cerca de 20% da mão-de-obra escrava do complexo cafeeiro, era comprometida com o transporte realizado por mulas que atravessavam o Vale do Paraíba em direção a Baixada Fluminense tendo, entre outras paragens Nova Iguaçu, que era um importante empório e entreposto comercial. Com o advento da ferrovia (1850/1860), este contingente de trabalhadores pôde ser deslocado para a atividade-fim do complexo cafeeiro: a lavoura. Já Nova Iguaçu entrou em decadência, pois já não havia mais os tropeiros e com sua ausência o comércio minguou, principalmente a venda de produtos de subsistência produzidos nos arredores de Nova Iguaçu.
A Cidade do Rio de Janeiro passou a se estruturar a partir do café, na adequação/modernização da região portuária e central, além da ampliação dos bairros nobres como Botafogo que abrigou dezenas de palacetes neoclássicos dos barões do café. A nobiliarquia brasileira morava na capital, assim como os grandes empresários que construíam casas suntuosas nas franjas do poder.
As questões como habitação, trabalho, produção, administração pública, cultura, lazer são colocadas à luz de um novo momento que se abre para o Rio de Janeiro, uma 'janela de oportunidades' cujos pilotos do processo de modernização da cidade são, em essência, engenheiros.
Corroborou com este clima uma série de intelectuais que refletiram sobre este momento a partir do papel que a Cidade Rio-capital já exercia no contexto nacional, integrando as regiões. No contexto internacional, como porto de recepção e distribuição de mercadorias nacionais e estrangeiras, era preciso ampliar e modernizar o processo mediante a escala produtiva do novo momento do capitalismo internacional.
LAMARÃO resume bem a questão da dinâmica econômica do Rio de Janeiro deste momento:
Centro exportador e importador, o Rio torna-se também ponto quase obrigatório de transferências e trânsito de mercadorias europeias e norte-americanas, alimentando um ativo comércio de cabotagem. (LAMARÃO, p. 55)
Considero o engenheiro André Rebouças um destes intelectuais. Ele pensou de maneira integrada o processo produtivo e a logística de transporte desta produção, a partir de um sistema complexo que envolvia ferrovias e portos que se voltavam para o Porto do Rio de Janeiro. Rebouças, dentre vários trabalhos realizados, foi o responsável pela concepção e construção do armazém Docas D. Pedro II, que seguiu o modelo inglês dos armazéns das Docas Rainha Vitória, a qual conheceu in loquo em viagem realizada a Londres.
Este modelo foi o precursor de um processo de modernização que envolveu a construção de galpões grandes e arejados rentes ao mar e com um atracadouro horizontal, que permitia a chegada de grandes embarcações. Foi realizado também, o rebaixamento do calado do mar e o aterramento de parte considerável da região portuária, modificando seu tortuoso traçado. Sistema de guindastes movidos à vapor substituíram o moroso processo de carga e descarga através de chatas e saveiros .
O sistema férreo foi integrado ao porto para facilitar o grande fluxo de mercadorias, assim como todo o complexo de estaleiros foi modernizado para atender a demanda crescente, na fabricação de embarcações ou na manutenção das naves que aportavam. Neste período (1850-1890) chegou-se a marca de 3 mil naves ao ano adentrando o Porto do Rio, consolidando-o como o principal porto brasileiro. Assim sendo, o complexo portuário não dava mais conta do volume de mercadoria, precisando assim de uma intervenção modernizadora que alavanca-se o processo de transporte, armazenagem, atracagem de naves maiores, carregamento das mercadorias, desburocratização para o despacho, enfim toda dinâmica do porto precisava ser modernizada. O mundo estava acelerando, na medida em que a economia ganhava uma escala jamais vista.
Além de Rebouças, cabe destaque para a Comissão de Melhoramentos da Cidade instalada em 1874. Esta comissão propôs uma reforma urbanística a partir do bairro Cidade Nova, tendo como base o Canal do Mangue, foco de diversos tipos de pestilências e via de integração dos importantes bairros de São Cristóvão, Engenho Velho e Andaraí, e da região portuária, que contava com uma população proletária crescente. O Plano Urbanístico que resultou do trabalho desta comissão previa o crescimento da cidade a partir de três grandes áreas: 1) Região Central e Portuária, 2) São Cristóvão, Andaraí e Engenho Velho, 3) Glória, Catete, Botafogo e Flamengo.
Na década de 1870, o complexo cafeeiro já ultrapassava 50% das exportações brasileiras, concomitantemente foi inaugurada uma linha permanente de paquetes à vapor que fazia o trajeto Londres-Rio de Janeiro. Mais do que a pontualidade, quase britânica, que os navios à vapor promoveram ao transporte, esta 'nova' forma de geração de energia foi essencial em uma conjuntura de escassez de mão de obra negra escravizada no Rio de Janeiro, lembrando que além da cessação do trato africano em 1850, no ano de 1871 instituiu-se a Lei do Ventre Livre. Os braços dos africanos, em essência, foram deslocados para a produção cafeeira devido ao fim do tráfico negreiro e do real término da escravidão africana reforçada pela Lei do Ventre Livre, um processo inexorável em um mundo capitalista em desenvolvimento.
Portanto, era preciso adequar à nova realidade que se abrira em um Brasil capitalista e com uma matriz de trabalho livre. Este processo de libertação gradual dos africanos abriu uma questão importante, o fluxo de libertos para a Cidade Rio, mais precisamente, para a região portuária aumentava exponencialmente ano a ano. Redundando em uma concentração paulatina de negros/pobres nesta região que adensou sua população rapidamente e de maneira desordenada a margem de qualquer tipo de estrutura habitacional digna.
Já sobre o ponto de vista tecnológico a energia à vapor consolidou, assim, a necessidade premente de modernização do processo de transporte de mercadorias que não cabia a penas ao Porto e sim a toda logística que envolvia este processo: estrada de ferro, galpões, maquinário, indústria naval etc. Logística esta, essencialmente movida pelos braços de trabalhadores livres e assalariados.
Já na virada do século XX a energia elétrica provocou outro salto em termo de desenvolvimento da região com a adoção da rede de bondes que consolidou os vetores da expansão da cidade, além dos guindaste elétricos. Neste momento o Rio de Janeiro não é mais a cidade do café, passa ser a cidade da indústria têxtil por excelência, destacadamente a Fábrica Bangu é o grande exemplo deste processo que contou com todo o aparato logístico do Porto que vem sendo modernizado desde 1870 e teve seu ápice durante o governo de Pereira Passos com a reforma de 1904 que transformou por completo o Porto e a Cidade.
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