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domingo, novembro 14, 2021

O 1964 em Areal: um resgate histórico que vai do medo à interação dos moradores com as tropas militares no RJ

 


Em frente à Igreja de Areal, canhões e soldados marcaram presença no dia 1º de abril de 1964 — Foto: Secretaria de Educação e Cultura de Areal / Divulgação

Em frente à Igreja de Areal, canhões e soldados marcaram presença no dia 1º de abril de 1964 — Foto: Secretaria de Educação e Cultura de Areal / Divulgação

Cinquenta e cinco anos se passaram desde o 31 de março de 1964, quando moradores de Areal, no interior do Rio, foram surpreendidos ao verem se materializar, bem diante de seus olhos, um cenário que parecia de um filme de guerra na pequena e pacata cidade, ainda pertencente a Três Rios, que apenas ouvia falar de uma "tal revolução".

O movimento de chegada de tropas de Minas Gerais e Rio de Janeiro começou na noite do dia 31 e madrugada do dia 1º de abril daquele mesmo ano trazendo um amanhecer tenso em meio a centenas de soldados armados, carros militares e canhões de guerra que já ocupavam a região.

Os moradores não entenderam bem o que estava acontecendo mas acreditavam se tratar do encontro entre essas tropas. O historiador Glauber Montes afirma que só uma pesquisa mais detalhada pode dizer se realmente ocorreu esse encontro. O que se sabe é que as tropas, de fato, passaram pela cidade.

Para contar essa história, o G1 buscou registros na antiga imprensa, livros e foi atrás de jovens e crianças que aparecem nas fotografias da época. São elas que trazem a partir de agora relatos do que viveram naquele dia, com a esperança de que esse fato histórico não caia no esquecimento. Apesar da tensão, não houve conflito mas, sim, muita interação com os militares, como mostram as imagens.

Ricardo Rêgo tinha 7 anos...

“Nos morros a gente só via capacetes e as pontas das armas”.

O morador Ricardo Rêgo tinha apenas 7 anos em 1964, mas se lembra bem do dia atípico que viveu, quando as tropas militares do Rio e de Petrópolis, na Região Serrana, marcharam em defesa do então Presidente da República, João Goulart, o Jango, no poder. Ricardo aparece em uma das fotografias com outros colegas. Ele está sentado em um canhão.

Na foto, Ricardo Rêgo aparece sentado em um dos carros militares no dia 1º de abril de 1964, em Areal  — Foto: Secretaria de Educação e Cultura de Areal / Divulgação

Na foto, Ricardo Rêgo aparece sentado em um dos carros militares no dia 1º de abril de 1964, em Areal — Foto: Secretaria de Educação e Cultura de Areal / Divulgação

O morador conta que, antes da fotografia, estava no colégio quando um tenente e dois soldados entraram na sala pedindo para todo mundo se retirar e ir para casa porque estava havendo uma "revolução".

"Foi quando vi que as ruas estavam cheias de soldados correndo para todos os cantos. Mas depois que a situação foi apaziguada, todos os moradores que até então estavam apreensivos foram para as ruas. Interagimos com os soldados, que foram muito simpáticos com todos", relata.

Angela Campos chegou a fugir...

Com 62 anos, Angela Campos é mulher de Ricardo, que aparece na foto com o canhão. Ela afirma que o temor era muito grande, pois o medo era que o suposto encontro das tropas poderia resultar em uma guerra.

"A gente ia para a escola e, de repente, tivemos que sair correndo. Meu pai colocou minha mãe e os seis filhos em um carro e fomos para uma fazenda em São José do Vale do Rio Preto, para fugir daquela confusão", disse.

Segundo Angela, ninguém sabia ao certo o que estava acontecendo.

"Só víamos aquelas armas, muitos soldados, diziam que ia ter guerra e que Areal ia acabar".

Militares ocuparam as ruas de Areal, RJ, no dia 1º de abril de 1964 — Foto: Secretaria de Educação e Cultura de Areal / Divulgação

Militares ocuparam as ruas de Areal, RJ, no dia 1º de abril de 1964 — Foto: Secretaria de Educação e Cultura de Areal / Divulgação

Zélia Luiza tinha 23 anos...

Zélia Luiza Moraes Garcia, hoje, aos 77 anos, lembra que todo o comércio fechou e que havia um temor de que houvesse um tiroteio onde, atualmente, é o Centro da cidade.

"Eu moro em frente à Igreja e foi um alvoroço. Muitos caminhões e canhões. Meus vizinhos todos saíram de casa porque diziam que ia ter uma revolução. Ficamos apreensivos, não dá para calcular o que passamos naquele dia", disse Zélia.

Medo de faltar energia...

O morador Claudio Abaurre contou que, com medo de que uma falta de luz atingisse a cidade, sua mãe comprou cerca de 30 caixas de velas.

"Eu as tinha em casa até dois anos atrás", disse.

Uma moradora, que preferiu não se identificar, relatou ao G1 que, embora não tivesse detalhes da importância política que aquela movimentação envolvia, desde a chegada dos primeiros soldados já sabia que aquele era um fato "que ia ficar para a história".

Contexto político

Segundo o historiador Glauber Montes, havia uma instabilidade política desde 1961, onde uma parcela da cúpula militar, alinhada a interesses empresariais e políticos, era contra o governo de Jango e já vinha sendo "ensaiada" a retirada dele do poder.

"Goulart era visto como um cara de esquerda, tanto que os militares tentam impedir a posse dele em 1961, após a renúncia do Jânio Quadros, e só não conseguiram porque houve uma resistência popular", disse.

De acordo com Glauber, outros conspiradores planejavam o "golpe" contra o governo para a primeira metade de abril, mas o general Olímpio Mourão Filho resolveu antecipar a tomada da Presidência da República, colocando suas tropas nas ruas, saindo de Minas Gerais em direção ao Rio, onde João Goulart estava.

Sabendo da presença das tropas de Minas nas ruas, Glauber explica que os comandantes que eram a favor do presidente e da "legalidade", no sentido de fazer cumprir a lei, enviaram seus homens para impedir que os militares avançassem para o território fluminense e, por este motivo, chegaram até Areal, onde ocorreu o encontro que marcou a história da pequena cidade de 12.471 habitantes, segundo estimativa do IBGE divulgada em 2018.

Em seu livro "A ditadura envergonhada", o autor Elio Gaspari cita o que foi considerado o estopim para a decisão do comandante Mourão Filho.

"A revolta dos marinheiros na semana anterior, e o discurso de Jango no Automóvel Clube, na véspera, desestabilizaram as Forças Armadas. A organização militar, baseada em princípios simples, claros e antigos, estava em processo de dissolução. Haviam sido abaladas a disciplina e a hierarquia", diz o trecho.

Sem confronto

Apesar da grande presença de militares armados e caminhões, não houve confronto em Areal — Foto: Secretaria de Educação e Cultura de Areal / Divulgação

Apesar da grande presença de militares armados e caminhões, não houve confronto em Areal — Foto: Secretaria de Educação e Cultura de Areal / Divulgação

Apesar do medo instalado na região, não houve confronto naquele dia e ninguém saiu ferido. Segundo Glauber, parte das tropas enviadas para impedir a passagem dos militares de Minas Gerais acabou aderindo ao movimento contra João Goulart por "falta de uma ação enérgica do próprio presidente".

"Alguns oficiais vão cumprindo seu papel para defender o mandato do presidente, mas ele mesmo não teve uma postura firme. No dia 1º, ele saiu do Rio e foi para Brasília. A tropa se sentiu sem liderança e, na minha visão, também aderiu ao movimento de Minas por isso", disse o historiador.

Glauber acrescenta que alguns autores citam nos livros que Jango poderia ter "bombardeado as tropas do Mourão, mas o presidente mesmo disse que quis evitar o derramamento de sangue, tentando arrumar soluções, mas foi perdendo as forças".

A afirmação é confirmada no livro de Gaspari em um trecho que cita, de um lado o comandante Cunha Mello - que comandava parte das tropas a favor de Jango, e de outro o Muricy, que liderava uma das tropas contra o então presidente.

"Em Areal, sem a tropa do 1º RI [Regimento de Infantaria], Cunha Mello percebeu que defendia uma legalidade sem retaguarda. Muricy mandara-lhe um recado informando que 'como cavalheiro' não daria o primeiro tiro sem avisá-lo", diz.

Em outro trecho, o autor diz que: "Ninguém sabia o que poderia acontecer quando Cunha Mello e Muricy se encontrassem. A situação militar de Muricy era precária. Àquela altura, porém, nem ele nem seus colegas jogavam uma partida militar. Jogavam cartadas políticas".

O movimento contra o presidente aconteceu, simultaneamente, em outros Estados e, segundo Gaspari, embora não tenha acontecido nenhum confronto em Areal, houve mortes em outros locais.

"No Recife dois estudantes foram mortos quando uma passeata marchou para o palácio do Campo das Princesas e se encontrou com as tropas que o cercavam. [...] No Rio de Janeiro militares atiraram contra manifestantes que se haviam reunido em frente ao Clube Militar, na Cinelândia", diz um trecho do capítulo "O Exército acordou revolucionário".

Gaspari continua dizendo: "Ainda assim, na contabilidade das quarteladas latino-americanas, a deposição do presidente João Goulart foi praticamente incruenta. Custou sete vidas, todas civis, nenhuma em combate".

E a preservação da memória?

Moradores temem que a presença dos militares em Areal no dia 1º de abril de 1964 seja esquecida — Foto: Secretaria de Educação e Cultura de Areal / Divulgação

Moradores temem que a presença dos militares em Areal no dia 1º de abril de 1964 seja esquecida — Foto: Secretaria de Educação e Cultura de Areal / Divulgação

Moradores de Areal acreditam na importância de preservar a memória daquela data, uma vez que a cidade fez parte daquele momento político do país.

"Da mesma forma que me marcou deve ter marcado outras pessoas", disse Angela Campos, afirmando que faz sua parte para garantir a memória dos acontecimentos da cidade anotando tudo em um caderno.

Filho de Zélia, Valber Moraes, de 44 anos, contou que está montando um projeto para que a cidade seja reconhecida e para que essa história seja mais divulgada.

Areal tem, segundo estimativa do IBGE em 2018, 12.471 habitantes. A Prefeitura disse que a cidade conta, atualmente, com 15 unidades de ensino, que atendem a 2 mil alunos. O G1 perguntou se há a difusão dessa parte da história na escola. Em resposta, o secretário de Educação e Cultura do município, José Roberto Zimbrão Ribeiro, afirmou que fará uma reunião nesta semana com os professores de história da cidade.

"Para que eles se aprofundem mais no tema e abordem esta passagem histórica citando a participação do município de Areal", disse ao G1.

Regime militar

Foi no dia 2 de abril que o Congresso Nacional declarou como vago o cargo da presidência da República e deu posse ao presidente da Câmara, Ranieri Mazzilli.

Ouça o áudio e leia trechos da sessão do Congresso que depôs Jango. Deputados que estavam na sessão também relataram os bastidores ao G1.

Tal fato culminou no início do regime militar, que governou o Brasil durante os 21 anos seguintes (1964-1985). Na época, Goulart saiu de Brasília para o Rio Grande do Sul e de lá para o Uruguai.

Para o historiador Glauber Montes é importante conhecer o sentido econômico, social e político daquela época.

"O Golpe de 1964 derrubou ilegalmente um presidente eleito e popular, e a ditadura, por meio do uso sistemático da censura, intimidação, cassações, torturas e assassinatos, abortou a participação política autônoma dos trabalhadores, enquanto reduziu o poder de compra dos salários pela metade em 21 anos, aprofundou a desigualdade social e entregou o país com 240% de inflação em 1985", concluiu.


Fonte: Por Aline Rickly e Ariane Marques, G1 

quinta-feira, novembro 11, 2021

O ensino de História Regional nas escolas brasileiras

 Em tempos de reformas educacionais profundas e apressadas no Brasil, como o Novo Ensino Médio e a Base Nacional Comum Curricular, a História Regional mantém o seu vigor.


Com as inúmeras mudanças que ocorreram no mundo e no Brasil nos últimos anos, a escola deixou de ser atraente para muitos alunos. Como consequências, por exemplo, vemos o aumento da evasão escolar, da violência e dos índices de reprovação. Vários fatores ajudam a entender este fenômeno. Um deles é o ensino de conteúdos desvinculados do cotidiano dos estudantes. O Ensino de História, neste sentido, não é uma exceção. Muitas vezes, os conteúdos abordados em sala de aula ou nos materiais didáticos privilegiam uma História bastante distante da realidade de boa parte daqueles que estão em sala de aula.

Nos últimos anos, no entanto, esse cenário parece dar sinais de mudança. Embora o processo de globalização tenha contribuído para a valorização da História Global em detrimento da História Regional, alguns teóricos, entre os quais Stuart Hall, têm colaborado para problematizar algumas questões que, se não estavam extintas, encontravam-se adormecidas, como, por exemplo, as identidades regionais e as identidades étnicas. Assim, as Ciências Sociais, entre elas a História, produziram pesquisas com enfoques teóricos e metodológicos com base no elemento local ou regional. [1]

Ensino de História e História Regional
Local, regional, global – categorias que dialogam. Foto: Pixabay

A História Regional, segundo José D´Assunção Barros, constitui-se em uma maneira de abordar a História, de fazer (no sentido de escrever/produzir), que, neste caso, dá especial atenção ao uso das fontes regionais. Sua preocupação se volta para um espaço regional, que não necessariamente esta “associado a um recorte administrativo ou geográfico, podendo se referir a um recorte antropológico, a um recorte cultural ou a qualquer outro recorte proposto pelo historiador de acordo com o problema histórico que irá examinar”. Seu interesse central é observar este espaço regional ou as relações sociais que ocorrem em seu seio. Após esse procedimento adota-se a comparação com “outros espaços similares” ou insere o regional em um “um universo maior (o espaço nacional, uma rede comercial)”. Desta feita, a questão que diferenciaria a História Regional da História Local seria a comparação, uma vez que a História Local teria uma perspectiva de estudar “a realidade microlocalizada por ela mesma”. [2]

Enquanto característica de produção, grosso modo, teríamos historiadores de profissão escrevendo História Regional, enquanto os memorialistas se concentrariam na História Local. Segundo Jurandir Malerba, os primeiros memorialistas, cronistas medievais, teriam surgido na França entre os séculos XIII e XIV. No Brasil, teriam aparecido com mais propriedade na virada do século XIX para o XX, como fruto das transformações socioeconômicas que ocorriam no país por conta do processo de urbanização. Desta feita, nas regiões que sofriam estas mudanças, surgiram intelectuais que começavam a registrar estas alterações em suas localidades. [3]

Maria de Lourdes Janotti destaca algumas características na escrita memorialistas, como por exemplo: a) uma produção mais voltada para textos biográficos, na qual suas experiências pessoais e o senso comum são a fonte de suas narrativas; b) podem fazer uso de arquivos, porém não se preocupam em divulgar a origem de suas informações; c) usam de estilo literário rebuscado, dando especial ênfase aos grandes acontecimentos de suas localidades e dos grandes personagens/heróis locais e; d) a produção é justificada pelo fato de a história local ser digna de se tornar eterna e por isso deve ser escrita e perpetrada pelas gerações futuras. [4]

Vejamos, agora, porque olhar a História pelo viés da História Regional pode ser uma boa oportunidade para os professores de História reconquistarem o interesse dos alunos.

O Ensino de História e os PCN’s

Em 26 de junho de 1998, por meio da Resolução CEB nº 3, o Governo Federal, por meio do Ministério da Educação (MEC), instituiu os chamados Parâmetros Curriculares Nacionais do Ensino Médio (PCNs), entre os quais o de Ciências Humanas e suas Tecnologias, no qual a disciplina História estava presente. Quatro anos mais tarde, em 2002, o mesmo ministério lançou o PCN+, seu objetivo geral era complementar as orientações que haviam sido dadas nos PCNs e oferecer novas abordagens metodologias para abordagem dos conteúdos, tendo especial atenção à interdisciplinaridade e a contextualização. Os documentos, que passaram a orientar o Ensino Médio no país, provocou alterações importantes em diversas disciplinas escolares. No campo da História, os PCN recomendavam, entre outras medidas, o uso da perspectiva da História Regional, recomendação esta existente desde a década de 1930, mas que até aquele momento não era aplicada plenamente nas escolas.

No que pese a pouca participação dos professores na elaboração dos dois documentos, o PCN, dentro da disciplina História, destacava que a História Regional não deveria ser tratada nas escolas como um conteúdo isolado e nem tampouco como a fração estanque de uma disciplina. A História Regional, segundo o documento instituído pelo Governo Federal na época, constitui uma ferramenta metodológica importante para compreensão do mundo no qual o aluno está inserido. Os conteúdos de História mais amplos e gerais, sejam da História do Brasil ou da História geral, devem ser trabalhados a partir da realidade dos alunos por meio da História Regional. Tal procedimento permite abordar a multiplicidade de realidades e o “outro”, isto é, permitir que o aluno reconheça os diferentes indivíduos e que reconheça tal diferença como legítima.

A História Regional, sublinha ainda o PCN, deveria ser trabalhada não em oposição à Nacional e geral, mas de forma relacional. Desta forma, ela permitiria construir um discurso menos “totalizante” e que fosse capaz de mostrar as especificidades regionais. A proposta também foi defendida por Márcia Gonçalves. A autora destacou que a História Regional redimensiona a dicotomia centro/periferia e torna possível escrever uma outra História Nacional, que problematiza a construção da unidade denominada “Brasil” em suas dimensões territorial e política. [5]

Possibilidades da História Regional

Como estabelecido em tais documentos, também acredito que o ensino da História Regional deve contribuir para a formação de uma identidade que valorize as experiências vivenciadas pelos alunos e que faça com que estes reconheçam-se como agentes sociais de um mundo que pode ser transformado – tornando-se, portanto, cidadãos. A partir da perspectiva da História Regional é possível introduzir o aluno de modo ativo na sociedade a qual de fato pertencem, levando- a entender o quanto de sua vida é construída e o quanto de elementos externos ele tem dentro de si. É neste campo mais restrito que as relações sociais aparecem com maior nitidez – e no qual podemos distinguir com mais clareza a construção das identidades sociais e dos sentimentos de pertencimento. Ao mesmo tempo, é a partir desta chave que se pode resgatar experiências coletivas e particulares ligadas a um determinado espaço geográfico, seja o regional ou o local. A identidade, afinal, segundo Gonçalves, é construída a partir da História Regional. Mais ainda, a História Regional e a identidade nos auxiliam a dar eco às múltiplas possibilidades da vida cotidiana e sentido aos diversos mundos possíveis. Desta forma, a História Regional deixa de ser um mero conteúdo – ela se transforma em recurso didático.

Diana Briceño enfatiza que o conceito de identidade social compreende os conceitos de identidade cultural e identidade étnica, estando ambas ligadas a um território e a um passado coletivo. A autora destaca que o apego à região passa pela infância e pelo contato do indivíduo com a família e com a sua vizinhança, pela assimilação das tradições, pelas crenças e pelos costumes, entre outros elementos. Desta forma, enfatizar a História Regional permite aos alunos um contato com suas raízes e com o passado da sua comunidade, definida por uma série de fatores acumulados ao longo das gerações. [6]

Esse debate é fundamental para se pensar a revalorização da História Regional no currículo de História, haja vista que a “tradicional” História globalizante, ainda presente nos livros didáticos distribuídos pelo MEC e, ao que parece, ainda presente na recente Base Nacional Comum Curricular (BNCC), não é capaz de atrair os alunos.

A História Regional e os “novos” personagens

Como salienta Francisco Ribeiro da Silva, a valorização da História Regional não se dá apenas no Brasil. O fenômeno ocorre também na Europa, no centro do mundo ocidental, devido a alguns fatores, a saber: a) Estados-nações têm se dado conta de que, num mundo globalizado, o que vai manter sua identidade e individualidade é a cultura e não a economia; b) a permanência dos regionalismos e das regiões, assim como de suas identidades, posto que as nações não são mais justificadas pelo nacionalismo exacerbado do século XIX e; c) o peso do centro está cada vez menor; as periferias estão cada vez mais ativas e reivindicativas, exigindo políticas públicas para o seu desenvolvimento. [7]

Silva também destaca que a História Regional serviria para desenvolver a consciência cívica, a integração e a intervenção na comunidade; valorizar aspectos comuns e diferenças que podem diminuir rivalidades locais; despertar o amor à terra e perceber que a nação é feita de partes que devem ser descobertas e expostas ao todo.

A História Regional, conforme podemos ver, permite trazer “novos atores” para o campo da História. Alguns personagens que, quando muito, eram secundários ou que tradicionalmente eram totalmente “negligenciados” pela História tradicional, podem, a partir do prisma da História Regional, ser incluídos no processo histórico, caso dos ameríndios, das mulheres, das crianças, dos trabalhadores, dos escravos etc. Um avanço nesta direção é a Lei 10.639/2003, que determina o ensino da cultura e da história afro-brasileira e africana no Ensino Básico, lei esta expandida cinco anos depois pela Lei 11.645/2008, que acrescentou a temática indígena. As duas leis permitiram que negros e indígenas se tornassem personagens mais presentes e ativos nas narrativas historiográficas, até então dominada por protagonistas brancos e europeus.

Algumas considerações finais

Algumas perguntas são importantes: como podemos resgatar as experiências regionais na História, já que nem sempre o espaço é determinado por um passado mítico nacional e nem sempre a sua temporalidade se vincula a esta História? Ou ainda: porque determinados eventos da História Regional se convertem em eventos da História Nacional?

Apesar da qualidade dos trabalhos a respeito da História Regional, é difícil responder a tais perguntas. A História Regional no Brasil ainda engatinha. Deste modo, a lição lançada pelo Manifesto publicado na Revista Arrabaldes, em 1988, não foi incorporada à prática docente. [8] Naquela oportunidade, historiadores já consagrados, como Maria Yedda Linhares e Leandro Konder, entre outros, apoiaram propostas como essa, enfatizando que se deveria dar mais atenção aos estudos de História Regional e local. O que nos obriga a voltar a pensar nestas perguntas e em suas respostas dentro de um quadro mais amplo da História Regional no Brasil. Como pensar a história de municípios e/ou de regiões mais distantes espacialmente, temporalmente ou historicamente falando das capitais de seus estados? Como pensar a história destes estados que se apresentam distantes da História nacional, conduzida pelo eixo sul-sudeste?

Acredito, como muitos outros historiadores, que não há uma fórmula pronta, acabada e única que possa ser aplicada pelos historiadores regionais, sobretudo por aqueles professores de História que se predispõem a fazer uso da História Regional em sala de aula. Mas, se há uma coisa que todos podem fazer, é aceitar o desafio de estimularem os alunos a produzirem as suas próprias histórias. Só assim se poderá dar voz aos “novos” personagens da narrativa historiográfica (mulheres, sertanejas, negras, indígenas, orientais, crianças e etc.), fazendo com que não apenas a escola e a história façam sentido, mas também este novo cenário marcado pela globalização, pela redemocratização. Somente assim o aluno será capaz de se identificar com a História ensinada nas aulas.

Notas

[1] HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. Rio de Janeiro: DP&A, 2006.

[2] BARROS, José D´Assunção. O campo da História. Petrópolis: Editora Vozes, 2010, p. 132 e ss. Citações pp. 152-153.

[3] MALERBA, Jurandir. “Notas à margem: a crítica historiográfica no Brasil dos anos 1990”. Textos de História, v.10, n.1/2, 2002.

[4] JANOTTI, Maria de Lourdes Monaco. “Historiografia, uma questão Regional? São Paulo no Período Republicano, um exemplo.” In: SILVA, Marcos (coord.). República em Migalhas. História Regional e Local. São Paulo: Editora Marco Zero, 1990. pp. 81- 101.

[5] GONÇALVES. Márcia de Almeida. “História local: o reconhecimento da identidade pelo caminho da insignificância”. In MONTEIRO, A. M. e GASPARELLO, A. M. e MAGALHÃES, M. S. (orgs.). Ensino de história: sujeitos, saberes e práticas. Rio de Janeiro: Mauad, 2007, pp. 175-185.

[6] BRICEÑO, Diana. “Los problemas que plantea la escritura de textos de Historia regional”. In Revista Iberoamericana de Educación, nº 41/2 – 10 de enero de 2007.

[7] RIBEIRO DA SILVA, Francisco. “História local: objetivos, métodos e fontes”. In Acta de Conferência Nacional. Porto: Universidade do Porto: Faculdade de Letras, 1999.

[8] Ver: https://pt.scribd.com/document/96193345/Manifesto-Arrabaldes

Sugestões Bibliográficas

ALBUQUERQUE JÚNIOR, Durval Muniz. Nordestino: uma invenção do falo; uma História do gênero masculino (Nordeste – 1920/1940). Maceió: Editora Catavento, 2003.

BARROS, José D´Assunção. O campo da História. Petrópolis: Editora Vozes, 2010.

BRASIL. MEC. Secretaria de Educação Média e Tecnológica. Parâmetros curriculares nacionais: ensino médio. Brasília, 1999.

BRASIL. MEC. Secretaria de Educação Média e Tecnológica. PCNs+ Ensino Médio: orientações educacionais complementares aos Parâmetros Curriculares Nacionais. Brasília, 2002. 144 p

BURKE, P. (org.). A Escrita da história – Novas perspectivas. São Paulo: Edusp, 1992.

COLETIVO EDITORIAL ARRABALDES. “Manifesto Arrabaldes”. In Revista Arrabaldes. Rio de Janeiro: Petrópolis (RJ): ano I, nº 1, maio/agosto 1988, pp. 4-10.

MARTINS FILHO, Amilcar Vianna. Como escrever a história da sua cidade. Belo Horizonte: ICAM,2005.

MOREIRA, Luiz Guilherme S. & AZEVEDO, Maria Catarina da Silva. Atlas Histórico e Geográfico Escolar de São Pedro da Aldeia. São Pedro da Aldeia (RJ): Secretária Municipal de Educação de São Pedro da Aldeia, 2013. Disponível em: https://pt.scribd.com/doc/113279076/Atlas-SPA. Acessado em abril de 2017.

MOREIRA, Luiz Guilherme S. & CARNEIRO, Janderson Bax. Os índios na História da Aldeia de São Pedro de Cabo Frio – séculos XVII-XIX. Rio de Janeiro: Grafline, 2010.

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