Testemunhas da época mantêm em casa, 55 anos depois, anotações e fotografias temendo que o fato histórico, carente de registros bibliográficos, seja esquecido.
Em frente à Igreja de Areal, canhões e soldados marcaram presença no dia 1º de abril de 1964 — Foto: Secretaria de Educação e Cultura de Areal / Divulgação
Cinquenta e cinco anos se passaram desde o 31 de março de 1964, quando moradores de Areal, no interior do Rio, foram surpreendidos ao verem se materializar, bem diante de seus olhos, um cenário que parecia de um filme de guerra na pequena e pacata cidade, ainda pertencente a Três Rios, que apenas ouvia falar de uma "tal revolução".
O movimento de chegada de tropas de Minas Gerais e Rio de Janeiro começou na noite do dia 31 e madrugada do dia 1º de abril daquele mesmo ano trazendo um amanhecer tenso em meio a centenas de soldados armados, carros militares e canhões de guerra que já ocupavam a região.
Os moradores não entenderam bem o que estava acontecendo mas acreditavam se tratar do encontro entre essas tropas. O historiador Glauber Montes afirma que só uma pesquisa mais detalhada pode dizer se realmente ocorreu esse encontro. O que se sabe é que as tropas, de fato, passaram pela cidade.
Para contar essa história, o G1 buscou registros na antiga imprensa, livros e foi atrás de jovens e crianças que aparecem nas fotografias da época. São elas que trazem a partir de agora relatos do que viveram naquele dia, com a esperança de que esse fato histórico não caia no esquecimento. Apesar da tensão, não houve conflito mas, sim, muita interação com os militares, como mostram as imagens.
Ricardo Rêgo tinha 7 anos...
“Nos morros a gente só via capacetes e as pontas das armas”.
O morador Ricardo Rêgo tinha apenas 7 anos em 1964, mas se lembra bem do dia atípico que viveu, quando as tropas militares do Rio e de Petrópolis, na Região Serrana, marcharam em defesa do então Presidente da República, João Goulart, o Jango, no poder. Ricardo aparece em uma das fotografias com outros colegas. Ele está sentado em um canhão.
Na foto, Ricardo Rêgo aparece sentado em um dos carros militares no dia 1º de abril de 1964, em Areal — Foto: Secretaria de Educação e Cultura de Areal / Divulgação
O morador conta que, antes da fotografia, estava no colégio quando um tenente e dois soldados entraram na sala pedindo para todo mundo se retirar e ir para casa porque estava havendo uma "revolução".
"Foi quando vi que as ruas estavam cheias de soldados correndo para todos os cantos. Mas depois que a situação foi apaziguada, todos os moradores que até então estavam apreensivos foram para as ruas. Interagimos com os soldados, que foram muito simpáticos com todos", relata.
Angela Campos chegou a fugir...
Com 62 anos, Angela Campos é mulher de Ricardo, que aparece na foto com o canhão. Ela afirma que o temor era muito grande, pois o medo era que o suposto encontro das tropas poderia resultar em uma guerra.
"A gente ia para a escola e, de repente, tivemos que sair correndo. Meu pai colocou minha mãe e os seis filhos em um carro e fomos para uma fazenda em São José do Vale do Rio Preto, para fugir daquela confusão", disse.
Segundo Angela, ninguém sabia ao certo o que estava acontecendo.
"Só víamos aquelas armas, muitos soldados, diziam que ia ter guerra e que Areal ia acabar".
Militares ocuparam as ruas de Areal, RJ, no dia 1º de abril de 1964 — Foto: Secretaria de Educação e Cultura de Areal / Divulgação
Zélia Luiza tinha 23 anos...
Zélia Luiza Moraes Garcia, hoje, aos 77 anos, lembra que todo o comércio fechou e que havia um temor de que houvesse um tiroteio onde, atualmente, é o Centro da cidade.
"Eu moro em frente à Igreja e foi um alvoroço. Muitos caminhões e canhões. Meus vizinhos todos saíram de casa porque diziam que ia ter uma revolução. Ficamos apreensivos, não dá para calcular o que passamos naquele dia", disse Zélia.
Medo de faltar energia...
O morador Claudio Abaurre contou que, com medo de que uma falta de luz atingisse a cidade, sua mãe comprou cerca de 30 caixas de velas.
"Eu as tinha em casa até dois anos atrás", disse.
Uma moradora, que preferiu não se identificar, relatou ao G1 que, embora não tivesse detalhes da importância política que aquela movimentação envolvia, desde a chegada dos primeiros soldados já sabia que aquele era um fato "que ia ficar para a história".
Contexto político
Segundo o historiador Glauber Montes, havia uma instabilidade política desde 1961, onde uma parcela da cúpula militar, alinhada a interesses empresariais e políticos, era contra o governo de Jango e já vinha sendo "ensaiada" a retirada dele do poder.
"Goulart era visto como um cara de esquerda, tanto que os militares tentam impedir a posse dele em 1961, após a renúncia do Jânio Quadros, e só não conseguiram porque houve uma resistência popular", disse.
De acordo com Glauber, outros conspiradores planejavam o "golpe" contra o governo para a primeira metade de abril, mas o general Olímpio Mourão Filho resolveu antecipar a tomada da Presidência da República, colocando suas tropas nas ruas, saindo de Minas Gerais em direção ao Rio, onde João Goulart estava.
Sabendo da presença das tropas de Minas nas ruas, Glauber explica que os comandantes que eram a favor do presidente e da "legalidade", no sentido de fazer cumprir a lei, enviaram seus homens para impedir que os militares avançassem para o território fluminense e, por este motivo, chegaram até Areal, onde ocorreu o encontro que marcou a história da pequena cidade de 12.471 habitantes, segundo estimativa do IBGE divulgada em 2018.
Em seu livro "A ditadura envergonhada", o autor Elio Gaspari cita o que foi considerado o estopim para a decisão do comandante Mourão Filho.
"A revolta dos marinheiros na semana anterior, e o discurso de Jango no Automóvel Clube, na véspera, desestabilizaram as Forças Armadas. A organização militar, baseada em princípios simples, claros e antigos, estava em processo de dissolução. Haviam sido abaladas a disciplina e a hierarquia", diz o trecho.
Sem confronto
Apesar da grande presença de militares armados e caminhões, não houve confronto em Areal — Foto: Secretaria de Educação e Cultura de Areal / Divulgação
Apesar do medo instalado na região, não houve confronto naquele dia e ninguém saiu ferido. Segundo Glauber, parte das tropas enviadas para impedir a passagem dos militares de Minas Gerais acabou aderindo ao movimento contra João Goulart por "falta de uma ação enérgica do próprio presidente".
"Alguns oficiais vão cumprindo seu papel para defender o mandato do presidente, mas ele mesmo não teve uma postura firme. No dia 1º, ele saiu do Rio e foi para Brasília. A tropa se sentiu sem liderança e, na minha visão, também aderiu ao movimento de Minas por isso", disse o historiador.
Glauber acrescenta que alguns autores citam nos livros que Jango poderia ter "bombardeado as tropas do Mourão, mas o presidente mesmo disse que quis evitar o derramamento de sangue, tentando arrumar soluções, mas foi perdendo as forças".
A afirmação é confirmada no livro de Gaspari em um trecho que cita, de um lado o comandante Cunha Mello - que comandava parte das tropas a favor de Jango, e de outro o Muricy, que liderava uma das tropas contra o então presidente.
"Em Areal, sem a tropa do 1º RI [Regimento de Infantaria], Cunha Mello percebeu que defendia uma legalidade sem retaguarda. Muricy mandara-lhe um recado informando que 'como cavalheiro' não daria o primeiro tiro sem avisá-lo", diz.
Em outro trecho, o autor diz que: "Ninguém sabia o que poderia acontecer quando Cunha Mello e Muricy se encontrassem. A situação militar de Muricy era precária. Àquela altura, porém, nem ele nem seus colegas jogavam uma partida militar. Jogavam cartadas políticas".
O movimento contra o presidente aconteceu, simultaneamente, em outros Estados e, segundo Gaspari, embora não tenha acontecido nenhum confronto em Areal, houve mortes em outros locais.
"No Recife dois estudantes foram mortos quando uma passeata marchou para o palácio do Campo das Princesas e se encontrou com as tropas que o cercavam. [...] No Rio de Janeiro militares atiraram contra manifestantes que se haviam reunido em frente ao Clube Militar, na Cinelândia", diz um trecho do capítulo "O Exército acordou revolucionário".
Gaspari continua dizendo: "Ainda assim, na contabilidade das quarteladas latino-americanas, a deposição do presidente João Goulart foi praticamente incruenta. Custou sete vidas, todas civis, nenhuma em combate".
E a preservação da memória?
Moradores temem que a presença dos militares em Areal no dia 1º de abril de 1964 seja esquecida — Foto: Secretaria de Educação e Cultura de Areal / Divulgação
Moradores de Areal acreditam na importância de preservar a memória daquela data, uma vez que a cidade fez parte daquele momento político do país.
"Da mesma forma que me marcou deve ter marcado outras pessoas", disse Angela Campos, afirmando que faz sua parte para garantir a memória dos acontecimentos da cidade anotando tudo em um caderno.
Filho de Zélia, Valber Moraes, de 44 anos, contou que está montando um projeto para que a cidade seja reconhecida e para que essa história seja mais divulgada.
Areal tem, segundo estimativa do IBGE em 2018, 12.471 habitantes. A Prefeitura disse que a cidade conta, atualmente, com 15 unidades de ensino, que atendem a 2 mil alunos. O G1 perguntou se há a difusão dessa parte da história na escola. Em resposta, o secretário de Educação e Cultura do município, José Roberto Zimbrão Ribeiro, afirmou que fará uma reunião nesta semana com os professores de história da cidade.
"Para que eles se aprofundem mais no tema e abordem esta passagem histórica citando a participação do município de Areal", disse ao G1.
Regime militar
Foi no dia 2 de abril que o Congresso Nacional declarou como vago o cargo da presidência da República e deu posse ao presidente da Câmara, Ranieri Mazzilli.
Ouça o áudio e leia trechos da sessão do Congresso que depôs Jango. Deputados que estavam na sessão também relataram os bastidores ao G1.
Tal fato culminou no início do regime militar, que governou o Brasil durante os 21 anos seguintes (1964-1985). Na época, Goulart saiu de Brasília para o Rio Grande do Sul e de lá para o Uruguai.
Para o historiador Glauber Montes é importante conhecer o sentido econômico, social e político daquela época.
"O Golpe de 1964 derrubou ilegalmente um presidente eleito e popular, e a ditadura, por meio do uso sistemático da censura, intimidação, cassações, torturas e assassinatos, abortou a participação política autônoma dos trabalhadores, enquanto reduziu o poder de compra dos salários pela metade em 21 anos, aprofundou a desigualdade social e entregou o país com 240% de inflação em 1985", concluiu.
Fonte: Por Aline Rickly e Ariane Marques, G1
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