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terça-feira, julho 23, 2013

Bebê sequestrada e deixada em orfanato em 1974 pode ser filha de guerrilheiros

História de menina criada Belém pode esclarecer casos de crianças desaparecidas nas mãos de militares no Araguaia

Lia Cecília da Silva Martins, uma microempresária que vive na cidade de Catalão, em Goiás, é o elo perdido que pode esclarecer um dos mais escabrosos crimes da ditadura militar: o desaparecimento forçado de bebês e crianças filhos de militantes do PCdoB fuzilados no Araguaia.


Arquivo pessoal
A tia Sandra (esquerda) é a mais parecida com Lia, que reencontrou a família do pai morto em 2009

Sequestrada com poucos meses de idade e levada para um internato em Belém, no Pará, hoje aos 39 anos, Lia é um desses bebês cuja sobrevivência assusta os militares que tentaram eliminar todos os vestígios da guerrilha, sumindo inclusive com os órfãos do conflito. Há informações que levam ao desaparecimento de oito crianças pelas mãos de militares. Os indícios mais fortes rondam três casos.
Lia, o mais forte deles, ao ser entregue por dois homens que se apresentaram como autoridades (um como delegado e o outro como militar) ao orfanato Lar de Maria, um centro espírita no bairro São Brás, em Belém, em junho de 1974, tinha o corpo cravejado de picadas de mosquito e estava esquálida. A instituição, à época, era dirigida por um coronel do Exército, Oli de Castro, seu fundador.
Pelos fragmentos de história que chegam a Lia, antes a dupla teria tentado internar o bebê numa creche conhecida por Berço de Belém, da igreja católica, no mesmo bairro, mas as freiras que geriam a instituição não aceitaram o inusitado pedido.
A criança foi então deixada com o casal Sandoval e Eumélia Martins, que cuidavam do centro espírita e do orfanato, com a promessa de apanhá-la de volta. Nunca mais foram vistos. Afeiçoada ao bebê, Eumélia a registrou clandestinamente como filha do casal no dia 1º de julho de 1974 no cartório mais próximo.
Lia soube que havia sido adotada aos nove anos de idade, mas só em 2009 se interessou pela história ao ler uma reportagem publicada no jornal O Estado de S. Paulo. Era o relato de um dos guias dos militares, José Maria Alves da Silva, o Zé Catingueiro, apontando a existência de “um bebê branco” retirado da mãe pelos militares e que poderia ser filho de um guerrilheiro.

Arquivo pessoal
Lia e tia Maria Eliana se encontram em restaurante em Brasília

“O relato tinha detalhes parecidos com os da minha vida. Decidi então entrar em contato com o jornal”, diz ela. Os episódios seguintes mudaram a vida de Lia e dos Castro, uma família cearense que há quase duas décadas andava atrás de vestígios do ex-estudante de farmácia e bioquímica da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Antônio Teodoro de Castro, quadro do PCdoB, conhecido entre os militantes por Raul, desaparecido no Araguaia.
Traços faciais e DNA
Um a um, ela foi conhecendo os oito irmãos de Raul. Primeiro a advogada Mercês, depois Maria Eliana, Paulo, Roberto, Vitória, Socorro, Laura e Sandra. Num restaurante em Brasília, onde se encontrava com Maria Eliana, veio a testemunhar um fato curioso: um amigo da família Castro foi ao encontro de Maria Eliana e, depois de um abraçá-la, estranhou o distanciamento de Lia: “poxa Sandra, você nem me cumprimentou”, disse, dirigindo-se a Lia, que reagiu com certa perplexidade. Lia é parecida com as irmãs do guerrilheiro, mas a semelhança mais notável é com Sandra, com a qual foi confundida em outras ocasiões.
Em 2010, Lia decidiu tirar a limpo sua história. Um primeiro teste, de comparação dos detalhes faciais com as tias tornaria desnecessário prosseguir a investigação, mas ela aceitou fazer um teste de DNA. O laudo apontou 90% de coincidências entre seu código genético e os de seis de seus tios. Os outros 10% poderiam ser eliminados se os restos mortais de Raul fossem encontrados.
“Não temos dúvida de que a Lia é filha de nosso irmão”, afirma Maria Eliana. Para confirmar oficialmente a paternidade, ela solicitou que a Comissão de Mortos e Desaparecidos da Secretaria Especial de Direitos Humanos (CMD-SEDH) faça o mesmo teste através do banco de sangue de familiares de desaparecidos.
O pedido, encaminhado numa petição de 24 páginas assinada pelo ex-presidente da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), Cezar Britto e pela advogada Camila Gomes de Lima, ao qual o IG teve acesso com exclusividade, pode desvendar o último segredo da história de Lia.
Filha da guerrilha
“Gostaria de saber quem é minha mãe”, diz ela. “Me falaram que era estrangeira, que se incorporou à guerrilha e que fazia também observações sobre o movimento de pássaros”, afirma. A petição requer três informações: a função e legislação que rege o banco de sangue criado pela SEDH; o resultado dos exames de amostras de sangue deixados por Lia e seus prováveis tios; e, o mais importante, que os mesmos códigos de DNA sejam cruzados com os de familiares de 12 guerrilheiras desaparecidas que conviveram com Antônio Teodoro de Castro durante o período em que ele esteve no conflito, entre 1972 e final de 1974.
Existem muitas lendas sobre o “bebê branco” sequestrado pelos militares. A primeira, a de que seria filha de Raul com uma moça da região, conhecida por Regina; a segunda, a de que seria resultado do romance do guerrilheiro com a tal estrangeira; e, por último, que seria filho de Raul com uma das militantes do PCdoB que morreram no Araguaia.

Arquivo pessoal
Mercês foi a primeira tia, irmã do pai guerrilheiro, que Lia conheceu

“É plausível que a Lia seja filha de Theó (com o guerrilheiro era chamado em família) com uma das guerrilheiras. Se não for, pelo menos descartaremos uma das hipóteses”, diz Eliana. “Nos relatos nada é exatamente preciso. Por isso é razoável que se faça o confronto com as guerrilheiras”, afirma a advogada Camila. Ela reclama da morosidade da CMD-SEDH que, segundo afirma, tem adotado uma postura dúbia sobre casos do gênero. As amostras de sangue estão com o órgão há mais de um ano.
A jornalista Myrian Alves, que há duas décadas pesquisa a guerrilha, diz que diante da inconsistência das duas primeiras hipóteses, é mais provável que Lia seja filha de Raul com outra militante do PCdoB.
Porta da esperança
Maria Eliana conta que o coordenador CMD, Giles Gomes, justificou a inércia do governo argumentando que o caso é delicado por envolver a privacidade de familiares e sugeriu a alternativa de quem não quer incômodo: que as amostras sejam colhidas depois de uma negociação com parentes das guerrilheiras. A sugestão foi aceita.


Nunca deixei de buscar os meus pais verdadeiros. O que me contaram é que fui arrancada dos braços de minha mãe na prisão. Agora que sei quem é meu pai, um homem de caráter e idealista, vou ajudar a encontrá-lo. Quero dar a ele um enterro digno

O requerimento dos advogados é uma primeira tentativa de convencer o governo federal a cumprir sua obrigação, prevista na Constituição e nos tratados internacionais. O documento foi protocolado no dia 1º de abril, mas mesmo que a lei determine resposta em até cinco dias, até hoje a CMD não respondeu.
Caso a demora persista, a família de Raul pretende recorrer à mesma Corte Interamericana de Direitos Humanos (CIDH), da ONU, que já condenou o estado brasileiro por graves violações no caso da Guerrilha do Araguaia. Ela seguiria o precedente adotado num caso semelhante pela família Maria Mascarena Gelman, no Uruguai, que recorreu a CIDH e obrigou o governo de seu país a identificar seus pais.

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