As pesquisas mostram que pretos e pardos estão em desvantagem. O problema é cultural, não pedagógico. Quebre esse ciclo
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Wellington Soares, Lucas Magalhães e Paula Peres
Aos 28 anos, William Victorino de Castro é dançarino e morador do Capão Redondo, bairro na periferia da Zona Sul de São Paulo. Como toda pessoa negra, ele tem na ponta da língua os efeitos do racismo: "Em uma entrevista de emprego, se os candidatos são um branco e um preto, do mesmo lugar, com a mesma formação, o branco tem mais chance".
Na 4ª série, William não sabia ler nem escrever. Repetiu de ano quatro vezes e desinteressou-se pela escola até abandoná-la, na 8ª série, aos 18 anos. Ainda sem saber ler. "Me diziam que se era para ficar bagunçando na escola, que eu fosse embora e desse a oportunidade para outra pessoa que aproveitaria melhor", conta. Já adulto, o bailarino de hip-hop percebeu que precisava voltar a estudar. Matriculou-se na EJA em 2015, quando finalmente aprendeu a ler e escrever.
O caso do jovem é um exemplo de como o racismo está presente na escola: falhamos em matricular crianças negras, em garantir que elas permaneçam e, quando elas não largam os estudos, falhamos em fazer com que elas aprendam. Dados levantados pelo movimento Todos pela Educação com base na Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad) de 2015 mostram que, apesar de 54% da população se declarar preta ou parda (os dois grupos formam, para as estatísticas, o conjunto dos negros), a proporção de pessoas brancas matriculadas em todos os segmentos é sempre maior. Além disso, dados do Sistema de Avaliação da Educação Básica (Saeb) de 2015 também mostram diferença na aprendizagem: no 5º ano do Ensino Fundamental, enquanto 63,1% das crianças brancas tiveram aprendizado adequado em Língua Portuguesa, 56,3% dos pretos tiveram o mesmo desempenho e 41,5% dos pretos aprenderam o que tinham direito (veja mais informações no quadro mais abaixo).
A diferença pode ser explicada por diversos motivos, como o fato de que a população negra, em geral, é mais pobre. Mas não há como negar que há algo na rotina escolar que também contribui para a construção desses índices.
O racismo da sociedade também é refletido na escola, segundo William
A COR NA ESCOLA
EDUCAÇÃO INFANTIL 91,6% das crianças brancas de 4 e 5 anos são atendidas, enquanto 89,8% das pardas e 87,3% das pretas frequentam a escola.
ENSINO MÉDIO 71% dos brancos frequentam, mas 57,8% dos pardos e 56,8% dos pretos são matriculados.
PORTUGUÊS 37,5% dos brancos e cerca de 22% dos negros têm aprendizado adequado no 3º do Ensino Médio.
MATEMÁTICA 12,2% dos brancos terminam a escola com aprendizagem adequada. Entre os negros, são 5% no máximo.
MATRÍCULAS NA EJA 36% são negros, somente 15% são brancos e 43% não declaram cor.
ESCOLARIDADE MÉDIA dos negros de 18 a 29 anos: 9,5 anos. Entre os brancos: 10,8 anos.
Um estudo conduzido por Paula Louzano, professora da Faculdade de Educação da USP, mostra que o fracasso escolar é maior entre alunos negros. Um exemplo é que 14% dos jovens negros apresentam mais de dois anos de atraso escolar, o dobro da proporção entre brancos (7%). "Podemos argumentar que o processo de escolarização de algumas crianças brasileiras é mais tortuoso que o de outras", conclui a especialista.
Faça um exercício e tente observar, na sua escola: nas turmas de reforço e recuperação, quantos alunos são negros? No conselho de classe, alunos brancos são avaliados da mesma maneira que os que possuem a pele mais escura?
Chegar à universidade, se formar, conquistar bons empregos, se tornar chefe ou simplesmente sobreviver: muito disso é um grande desafio para a maioria dos brasileiros, mas para os alunos negros é ainda maior. Os dados mostram que as barreiras enfrentadas por mulheres e homens se tornam cada vez mais difíceis conforme a cor da pele escurece. Essas informações têm se tornado mais conhecidas recentemente, mas o que ainda parece difícil de enxergar são os obstáculos que nós mesmos criamos para que as trajetórias desses estudantes sejam histórias de sucesso.
Racismo estrutural
Desde o início do século 20 se difundiu a ideia de que o Brasil vivia em uma democracia racial. Diferentemente dos Estados Unidos e de outros lugares onde o conflito marcava as relações entre grupos de diferentes descendências, no Brasil o convívio supostamente harmônico entre portugueses, negros e índios era a prova de que não haveria racismo por aqui. Parte dessa comparação surgia do fato de que nos Estados Unidos haviam leis, por exemplo, que obrigavam negros a sentar só na parte de trás dos ônibus. Bastou dar ouvido aos negros brasileiros para notar que a nossa democracia racial nunca foi verdade.
De obras surgidas no pós-abolição, como as de Lima Barreto (1881-1922), a músicas de grupos de rap como Racionais Mc?s, é possível ver como a cor da pele é um central nas histórias pessoais. "O Brasil foi forjado na violência contra negros e indígenas. Há um estado organizado a partir do racismo", explica Maria Lucia da Silva, psicóloga do Instituto AMMA Psiquê e Negritude.
Aqui, cabe diferenciar preconceito e racismo. O primeiro se refere a um julgamento feito com base em alguma informação superficial que se tem sobre alguém, como ao dizer que todo negro é preguiçoso ou malandro. Mas o racismo é mais profundo: as estruturas que compõem a sociedade passam a se organizar de maneira a colocar negros em desvantagem. Daí vem o termo racismo estrutural ou institucional.
Para Mirian, as pessoas se incomodam com negros em cargos de liderança
A gestora invisível
A década é 1970. Na sala de aula da antiga primeira série de uma escola pública, uma criança percebe que nunca é chamada por sua professora para ir ao quadro ou receber algum auxílio para resolver um exercício. Ela era a única negra da turma. "Eu não sabia, mas estava passando pelas primeiras experiências de racismo da minha vida", conta Mirian Bernardo, hoje supervisora pedagógica do Colégio Municipal Dr. José Vargas de Souza, em Poços de Caldas, Minas Gerais.
Esse é um exemplo de como a convivência dos professores com os alunos impacta os jovens negros. Um estudo conduzido pelo professor da USP Ricardo Madeira comprova: ao comparar estudantes brancos e negros em mesmas condições - da mesma turma, de mesmo nível socioeconômico, com histórico escolar semelhante --, havia uma diferença fundamental entre os dois grupos. Alunos negros eram muito pior avaliados pelos próprios professores do que brancos (assista a entrevista em bit.ly/live-racismo). A sensação de discriminação sentida por William, o dançarino do início da reportagem, não é apenas impressão.
Para Valter Silverio, professor do departamento de Sociologia da UFSCar, pelo menos parte desse resultado é influenciado pelos estereótipos que pairam sobre sobre alunos negros. "Tem-se a ideia de que todo japonês é bom aluno, e de que todo negro não é inteligente, e sim malandro", afirma. Essas visões preconceituosas interferem nas expectativas que os docentes têm sobre os alunos de pele mais escura. Por consequência, eles são tratados de maneira diferente e acabam aprendendo menos. "Em ambientes de estudo e trabalho, há uma relação profunda entre racismo e práticas cotidianas", diz Ricardo Henriques, superintendente executivo do Instituto Unibanco.
Mirian aprendeu a impor sua presença onde chega para evitar questionamentos. "Nós temos que mostrar que merecemos estar ali, não temos que dar explicações a ninguém."
Ainda assim, Mirian sente o racismo das famílias e dos alunos. "Tenho duas professoras negras em uma escola com 52 turmas. Se eu não apresento a docente, percebo que a família discrimina", lamenta. Mirian sofre algo parecido em sua função. "Já teve gente que não acreditou que eu era a gestora de uma escola mesmo quando eu afirmava mais de uma vez."
Vestibular como militância
Foi difícil encontrar um espaço na agenda da vestibulanda Lilith Passos, 17 anos, para fazermos a sessão de fotos para este texto. Pela manhã, ela frequenta as aulas do 3º ano do Ensino Médio de uma escola pública em São Paulo. À tarde, assiste aulas de cursinho pré-vestibular popular e, aos sábados, participa de um preparatório específico para alunos que, como ela, querem estudar teatro no Ensino Superior. Naquela terça-feira, suas aulas da manhã tinham sido canceladas. Mesmo assim, tivemos pouco tempo.
O compromisso da tarde pertencia a outra parte importante da vida da jovem: a militância no movimento negro. Dias antes, um colega havia sido agredido por seguranças de um restaurante e um grupo de jovens retornaria ao local para fazer um protesto em frente ao empreendimento.
No último ano, as atividades da militância têm ficado um pouco de lado na rotina de Lilith. É que a pressão do vestibular demanda mais dedicação. E, para ela, ser aprovada tem tudo a ver com o combate ao racismo. "Penso muito sobre quem tem acesso às universidades públicas", diz ela, se referindo à baixa presença de pessoas pretas pardas no ambiente. "Ocupar esse espaço também é a minha luta", diz ela.
Para Lilith, 17 anos, estudar para entrar na universidade pública também é militância
ACREDITE MUITO
NA EDUCAÇÃO INFANTIL, observe o nível de atenção que você oferece a seus alunos brancos e negros.
OUÇA seus estudantes e professores pretos e pardos para saber como a relação com a escola pode melhorar.
INCENTIVE seus alunos negros a compartilhar conhecimentos com a turma e liderar projetos e atividades em grupo.
CONVERSE sobre carreira, sonhos e planos com os alunos. O que querem fazer quando acabar a Educação Básica?
MUDE O CURRÍCULO para inserir contribuições da cultura afro-brasileira para a sociedade.
MOSTRE EXEMPLOS de pretos e pardos bem-sucedidos em suas áreas de conhecimento.
A motivação de Lilith para conquistar esse espaço é um grande diferencial para que ela de fato tenha chance de ser aprovada no vestibular. Mas isso só é possível por dois motivos: a crença que ela própria tem em sua capacidade - a tão falada autoestima, mas dessa vez não restrita a características físicas - e o apoio de adultos e colegas que também acreditam no potencial dela.
A situação, como vimos, não é a mesma para a maioria dos estudantes. Para superar esse problema, é preciso trazer o racismo para o centro do debate. Na Zona Norte do Rio de Janeiro, no bairro do Acari, uma escola com nome de rainha angolana desenvolveu um projeto para promover a cultura afro-brasileira e também ajudar os alunos a refletir sobre a própria identidade deles.
O CIEP 173 Rainha Nzinga de Angola tem 678 alunos, dos quais 360 são negros. "Eles não se reconheciam negros no censo que realizamos anualmente, diziam ser morenos", conta Tânia de Lacerda Gabriel, diretora. Os alunos associavam a identificação negra com algo ruim. Piadas e apelidos sobre cor eram frequentes e quando questionados sobre o porquê de não realizarem o Exame Nacional do Ensino Médio (Enem), eles justificavam: "Essa prova é coisa de branco".
Tânia e a coordenadora pedagógica Isa Mirian da Silva Santos elaboraram um projeto que mexeu com o currículo e com as relações na escola. Os professores receberam formação para abordar conteúdos afro brasileiros e lidar com o racismo. "O objetivo era que todos entendessem que ser negro não é uma coisa ruim. Eles chegavam a achar que brancos e negros aprendiam de maneiras diferentes, e mostramos que, biologicamente, não há diferenças." Debates francos como esse ofereceram uma nova visão aos estudantes.
Dois anos depois, os resultados. A autoestima dos alunos melhorou, muitos assumiram seus cabelos naturais, e o censo realizado anualmente já mostra que os alunos têm mais segurança para indicar sua cor. "Elevar a autoestima é a questão primordial. Hoje, percebemos que eles têm orgulho de ser negros e isso aumentou o interesse pela escola", resume Tânia.
Em sala, o tratamento diário também tem efeito: incentivá-los a prestar o Enem ou na formulação de um projeto de vida, cobrar que se esforcem e garantir todo o apoio para que avancem nas suas aprendizagens faz toda a diferença. No fim das contas, o trabalho dos educadores é uma força poderosa contra o racismo.
Isa (à esquerda) e Tânia (à direita) se mobilizaram para recuperar a autoestima dos alunos negros
Fotos: TOMÁS ARTHUZZI
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