Hoje conhecemos o
Brasil mais profundamente do que ontem, graças ao esplêndido Carnavais, Malandros e Heróis, do antropólogo Roberto da Matta.
Na torrente de ideias, intuições, discussões conceituais e análises
extremamente surpreendentes de coisas que vivem despercebidas sob nossos
narizes, da Matta mostra que as ciências sociais podem ser inteligíveis,
pertinentes e reveladoras, sem a esterilidade de textos onde a preocupação com
o rigor científico e metodológico esconde, muitas vezes, a pobreza de idéias
dos autores.
Uma das ambições do livro é entender, não aquilo que temos de historicamente datado e cambiante, mas aquilo que é mais permanente e duradouro. São pertinentes "os valores, relações, grupos sociais e ideologias que pretendem estar ao lado e acima do tempo", e que definem, de forma mais profuda, o "caráter" ou a "cultura" de uma sociedade. O estudo destes elementos invariantes da sociedade brasileira é o que dá ao mesmo tempo força e fraqueza à contribuição de da Matta. Por um lado, ele nos permite entender melhor e de maneira mais sistemática uma série de aspectos reiterativos de nossa vida social, muitos dos quais consabidos de maneira difusa, mas difíceis de apreender de maneira coerente. Por outro lado, ficamos com poucas condições de entender como estas estruturas mais profundas podem, eventualmente, se alterar, e passar de um estágio que consideramos negativo, injusto e desagradável, para um estágio melhor. É possível dizer que Roberto da Matta sucede brilhantemente na primeira tarefa, mas, apesar de tentá-lo, falha na segunda.
O tema central do livro é o dilema entre os aspectos extremamente autoritários, hierarquizados e violentos da sociedade brasileira e a busca de um mundo harmônico, democrático e não conflitivo nesta mesma sociedade. Como todo autêntico dilema, ele não comporta soluções, mas um estado de tensão contínua entre polos conflitantes que conduzem a toda uma série de ritos e mitos que, de forma sistematizada ou no quotidiano, dramatizam as principais alternativas.
O lado autoritário e hierarquizado da sociedade brasileira tem, para Roberto da Matta (e esta é uma leitura pessoal do livro que faço), pelo menos três dimensões distintas. Uma é a existência de uma ordem formal, baseada em posições de status e prestígio social bem definidos, onde não existem conflitos e onde "cada um sabe o seu lugar". A outra é a existência de uma oposição sistemática entre o mundo das "pessoas", socialmente reconhecidas em seus direitos e privilégios, e um universo igualitário dos indivíduos, onde as leis impessoais funcionam como instrumentos de opressão e de controle ("para os amigos, tudo; para os inimigos, a lei"). A terceira é o mundo do sagrado, onde se opera uma suposta equalização da sociedade, já que todos são filhos de Deus, mas ao mesmo tempo são mantidas estruturas claramente hierárquicas de santidade.
Estes sistemas hierarquizados operam uma dissociação entre dois mundos ideais na mitologia brasileira: o mundo da casa, onde as pessoas valem pelo que são, onde reina a paz e a harmonia, e o mundo da rua, onde os indivíduos "lutam pela vida" em uma batalha impiedosa e anônima. Nesta batalha, as principais armas são, alternativamente, a afirmação dos privilégios de status das pessoas das classes dominantes ("você sabe com quem está falando?") e a redução dos indivíduos às leis impiedosas do mercado e da burocracia.
Se as paradas, as procissões e o "você sabe com quem está falando?" ritualizam e explicitam os aspectos hierárquicos e autoritários da sociedade brasileira, o carnaval e os heróis populares dramatizariam o seu oposto. O carnaval é essencialmente igualitário e, nos seus três dias, transpõe para o mundo da "rua" os ideais das relações espontâneas, afetivas, e essencialmente simétricas que são a contrapartida das paradas. A negação que o carnaval faz das estruturas de poder e autoridade é corporificada no malandro e seu paradigma, Pedro Malasartes, que não respeita nem crê nos valores da autoridade e do poder, mas os conhece, e aproveita deles em seu próprio benefício. O malandro, ao contrário do herói, não busca dominar a estrutura do poder e a ela se sobrepor - e, nesse processo, terminar por ser reabsorvido por ela. Ele vive nos interstícios do sistema, de seus absurdos e de suas contradições. Se o herói sai das paradas e o malandro dos carnavais, outro personagem - o místico renunciador - sai das procissões. Ele rejeita o sistema como um todo, nem o aceita nem se aproveita dele, mas cria seu próprio espaço de vida e seus próprios valores.
Este resumo não é totalmente fiel ao livro, porque Roberto da Matta não chega a "fechar" completamente seu sistema - o homem da ordem, por exemplo, o "caxias", não chega a ser analisado em maior profundidade, e as relações entre o carnaval e os três sistemas de autoridade tampouco são estudadas em todas suas possibilidades. Mas dois exemplos bastam para mostrar a fecundidade desta maneira de vez as coisas.
O primeiro é a análise da organização das Escolas de Samba, que teriam, segundo da Matta e os autores que cita, a estrutura de um "cometa". Neste sistema, existiria um núcleo extremamente fechado e coeso de "donos" da Escola, que criariam um segundo círculo de pessoas associadas, as quais, por sua vez, abririam a Escola para o público mais amplo possível. Com isto, as Escolas conseguem ser, ao mesmo tempo, profundamente autoritárias e amplamente democráticas. Elas misturam ricos e pobres, pretos e brancos, fazem de todos iguais perante o samba - mas é uma igualdade que não implica associação de pessoas, participação em decisões de interesse geral, disputa por lideranças efetivas. A Escola de Samba, assim, dramatiza e permite entender um aspecto bastante generalizado e pouco entendido de nossa realidade, que é a existência simultânea de formas de convivência igualitárias e não discriminatórias em contextos extremamente autoritários e estratificados.
O segundo tem a ver com a questão do horror brasileiro ao conflito. A ideia do "homem cordial", hoje sabemos com clareza, não é um simples equívoco, nem corresponde à total realidade das coisas. De fato, a dissociação que existe em nossa cultura entre o mundo das relações pessoais, baseadas na qualidade das pessoas, e o mundo selvagem da "rua", faz com que qualquer conflito aberto e manifesto seja percebido pelos participantes como algo extremamente ameaçador. A consequência é que ser "agressivo" é um dos defeitos sociais mais graves, e o "tudo bem", "numa boa", pronunciados a cada instante, o seu oposto. Mas como a realidade social é de conflitos e contradições, estes, quando se manifestam, tendem a ser de fato violentos, desgarradores e irreparáveis, quando não camuflados e sistematicamente negados, gerando assim a má fé e o cinismo institucionalizados.
O que Roberto da Matta não consegue sugerir de forma satisfatória são maneiras pelas quais estas estruturas sociais mais profundas podem ser alteradas. Ele desconfia das transformações e revoluções de tipo político, já que elas teriam por objetivo, essencialmente, trocar a posição de alguns atores dentro de estruturas basicamente imutáveis. A modernização capitalista não consegue fazer do Brasil um país capitalista no sentido anglo-saxão, porque encontraria em nosso meio raízes sociológicas e culturais imunes, ou quase, aos eventos da história. Se isto é certo, seria o mesmo para o socialismo. No entanto, ele parece crer que, em personagens tipificados por Augusto Madraga, que rejeita o espaço social com suas alternativas predeterminadas para criar seu próprio universo, existiria alguma forma de esperança.
É, sem dúvida, muito pouco, principalmente se lembramos que o místico, geralmente, renuncia ao mundo da terra, e cria seu espaço novo no mundo dos céus, deixando o daqui intocado. No entanto, não deixa de ser curiosa a coincidência entre esta proposta pouco explicitada por da Matta e a tese central de Weber a respeito do caráter extremamente dinâmico e revolucionário do carisma nos processos de mudança social.
A falta de resposta à pergunta sobre o futuro pode significar, ainda, o simples fato de que esta resposta não existe de maneira simples, e que algumas estruturas da sociedade brasileira são muito mais profundas e difíceis de mudar do que gostaríamos. Ter consciência delas, no entanto, já é um primeiro passo, e neste sentido, de conhecimento e desmistificação, a contribuição de Roberto da Matta é muito grande.
Uma das ambições do livro é entender, não aquilo que temos de historicamente datado e cambiante, mas aquilo que é mais permanente e duradouro. São pertinentes "os valores, relações, grupos sociais e ideologias que pretendem estar ao lado e acima do tempo", e que definem, de forma mais profuda, o "caráter" ou a "cultura" de uma sociedade. O estudo destes elementos invariantes da sociedade brasileira é o que dá ao mesmo tempo força e fraqueza à contribuição de da Matta. Por um lado, ele nos permite entender melhor e de maneira mais sistemática uma série de aspectos reiterativos de nossa vida social, muitos dos quais consabidos de maneira difusa, mas difíceis de apreender de maneira coerente. Por outro lado, ficamos com poucas condições de entender como estas estruturas mais profundas podem, eventualmente, se alterar, e passar de um estágio que consideramos negativo, injusto e desagradável, para um estágio melhor. É possível dizer que Roberto da Matta sucede brilhantemente na primeira tarefa, mas, apesar de tentá-lo, falha na segunda.
O tema central do livro é o dilema entre os aspectos extremamente autoritários, hierarquizados e violentos da sociedade brasileira e a busca de um mundo harmônico, democrático e não conflitivo nesta mesma sociedade. Como todo autêntico dilema, ele não comporta soluções, mas um estado de tensão contínua entre polos conflitantes que conduzem a toda uma série de ritos e mitos que, de forma sistematizada ou no quotidiano, dramatizam as principais alternativas.
O lado autoritário e hierarquizado da sociedade brasileira tem, para Roberto da Matta (e esta é uma leitura pessoal do livro que faço), pelo menos três dimensões distintas. Uma é a existência de uma ordem formal, baseada em posições de status e prestígio social bem definidos, onde não existem conflitos e onde "cada um sabe o seu lugar". A outra é a existência de uma oposição sistemática entre o mundo das "pessoas", socialmente reconhecidas em seus direitos e privilégios, e um universo igualitário dos indivíduos, onde as leis impessoais funcionam como instrumentos de opressão e de controle ("para os amigos, tudo; para os inimigos, a lei"). A terceira é o mundo do sagrado, onde se opera uma suposta equalização da sociedade, já que todos são filhos de Deus, mas ao mesmo tempo são mantidas estruturas claramente hierárquicas de santidade.
Estes sistemas hierarquizados operam uma dissociação entre dois mundos ideais na mitologia brasileira: o mundo da casa, onde as pessoas valem pelo que são, onde reina a paz e a harmonia, e o mundo da rua, onde os indivíduos "lutam pela vida" em uma batalha impiedosa e anônima. Nesta batalha, as principais armas são, alternativamente, a afirmação dos privilégios de status das pessoas das classes dominantes ("você sabe com quem está falando?") e a redução dos indivíduos às leis impiedosas do mercado e da burocracia.
Se as paradas, as procissões e o "você sabe com quem está falando?" ritualizam e explicitam os aspectos hierárquicos e autoritários da sociedade brasileira, o carnaval e os heróis populares dramatizariam o seu oposto. O carnaval é essencialmente igualitário e, nos seus três dias, transpõe para o mundo da "rua" os ideais das relações espontâneas, afetivas, e essencialmente simétricas que são a contrapartida das paradas. A negação que o carnaval faz das estruturas de poder e autoridade é corporificada no malandro e seu paradigma, Pedro Malasartes, que não respeita nem crê nos valores da autoridade e do poder, mas os conhece, e aproveita deles em seu próprio benefício. O malandro, ao contrário do herói, não busca dominar a estrutura do poder e a ela se sobrepor - e, nesse processo, terminar por ser reabsorvido por ela. Ele vive nos interstícios do sistema, de seus absurdos e de suas contradições. Se o herói sai das paradas e o malandro dos carnavais, outro personagem - o místico renunciador - sai das procissões. Ele rejeita o sistema como um todo, nem o aceita nem se aproveita dele, mas cria seu próprio espaço de vida e seus próprios valores.
Este resumo não é totalmente fiel ao livro, porque Roberto da Matta não chega a "fechar" completamente seu sistema - o homem da ordem, por exemplo, o "caxias", não chega a ser analisado em maior profundidade, e as relações entre o carnaval e os três sistemas de autoridade tampouco são estudadas em todas suas possibilidades. Mas dois exemplos bastam para mostrar a fecundidade desta maneira de vez as coisas.
O primeiro é a análise da organização das Escolas de Samba, que teriam, segundo da Matta e os autores que cita, a estrutura de um "cometa". Neste sistema, existiria um núcleo extremamente fechado e coeso de "donos" da Escola, que criariam um segundo círculo de pessoas associadas, as quais, por sua vez, abririam a Escola para o público mais amplo possível. Com isto, as Escolas conseguem ser, ao mesmo tempo, profundamente autoritárias e amplamente democráticas. Elas misturam ricos e pobres, pretos e brancos, fazem de todos iguais perante o samba - mas é uma igualdade que não implica associação de pessoas, participação em decisões de interesse geral, disputa por lideranças efetivas. A Escola de Samba, assim, dramatiza e permite entender um aspecto bastante generalizado e pouco entendido de nossa realidade, que é a existência simultânea de formas de convivência igualitárias e não discriminatórias em contextos extremamente autoritários e estratificados.
O segundo tem a ver com a questão do horror brasileiro ao conflito. A ideia do "homem cordial", hoje sabemos com clareza, não é um simples equívoco, nem corresponde à total realidade das coisas. De fato, a dissociação que existe em nossa cultura entre o mundo das relações pessoais, baseadas na qualidade das pessoas, e o mundo selvagem da "rua", faz com que qualquer conflito aberto e manifesto seja percebido pelos participantes como algo extremamente ameaçador. A consequência é que ser "agressivo" é um dos defeitos sociais mais graves, e o "tudo bem", "numa boa", pronunciados a cada instante, o seu oposto. Mas como a realidade social é de conflitos e contradições, estes, quando se manifestam, tendem a ser de fato violentos, desgarradores e irreparáveis, quando não camuflados e sistematicamente negados, gerando assim a má fé e o cinismo institucionalizados.
O que Roberto da Matta não consegue sugerir de forma satisfatória são maneiras pelas quais estas estruturas sociais mais profundas podem ser alteradas. Ele desconfia das transformações e revoluções de tipo político, já que elas teriam por objetivo, essencialmente, trocar a posição de alguns atores dentro de estruturas basicamente imutáveis. A modernização capitalista não consegue fazer do Brasil um país capitalista no sentido anglo-saxão, porque encontraria em nosso meio raízes sociológicas e culturais imunes, ou quase, aos eventos da história. Se isto é certo, seria o mesmo para o socialismo. No entanto, ele parece crer que, em personagens tipificados por Augusto Madraga, que rejeita o espaço social com suas alternativas predeterminadas para criar seu próprio universo, existiria alguma forma de esperança.
É, sem dúvida, muito pouco, principalmente se lembramos que o místico, geralmente, renuncia ao mundo da terra, e cria seu espaço novo no mundo dos céus, deixando o daqui intocado. No entanto, não deixa de ser curiosa a coincidência entre esta proposta pouco explicitada por da Matta e a tese central de Weber a respeito do caráter extremamente dinâmico e revolucionário do carisma nos processos de mudança social.
A falta de resposta à pergunta sobre o futuro pode significar, ainda, o simples fato de que esta resposta não existe de maneira simples, e que algumas estruturas da sociedade brasileira são muito mais profundas e difíceis de mudar do que gostaríamos. Ter consciência delas, no entanto, já é um primeiro passo, e neste sentido, de conhecimento e desmistificação, a contribuição de Roberto da Matta é muito grande.
Comentário
ao livro de Roberto da Matta, Carnavais, Malandros e Heróis, O Estado
de São Paulo, 14 de setembro de 1979.
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