A longa tradição de golpes 'brancos' no Brasil
Engana-se quem
pensar que estamos diante de um fenômeno 'novo' em nossa história: o que não falta em nossa história são golpes como o de agora.
O
golpe em curso no Brasil, e que nesta quarta-feira vai atingir um novo momento
de clímax com a votação do afastamento da presidenta Dilma Rousseff, consagrou
aqui na Alemanha o nome “kalter Putsch” - "golpe frio” - como sua certidão
de batismo. Criada, ao que parece, pela revista Der Spiegel, a expressão se
espalhou por toda a imprensa alemã.
Na
nossa tradição o nome consagrado para este tipo de golpe que está sendo dado é
“golpe branco”, por oposição a “golpe militar”. Tradição? Sim, porque engana-se
quem pensar que estamos diante de um fenômeno “novo” em nossa história. Nela
abundam “golpes brancos”. Bem, os há de todas as tonalidades, do cinzento ao
marrom, por exemplo. “Marrom”? É, “marrom”, porque quase todos os golpes no
Brasil, de 1954 para cá, contaram com a participação ativa e conspirativa de
nossa “imprensa, hoje mídia, marrom”, impropriamente chamada de “grande
imprensa”, como nas campanhas sujas contra Getulio em 1954 e contra Goulart em
63/64. E agora, mais uma vez, neste golpe de 2016.
Vamos
a um rápido levantamento dos golpes brancos em nossa trajetória histórica.
Constituição
de 1824.
A primeira Constituição do
Império foi outorgada ao país por D. Pedro I, através de um golpe branco. Este
foi precedido por um golpe militar. Em 12 de novembro de 1823, cansado pelas
querelas entre as facções irreconciliáveis da Assembléia Constituinte que ele
mesmo nomeara, D. Pedro I mandou a tropa cerca-la, prendeu alguns dos deputados
e encerrou a questão. No dia seguinte nomeou uma comissão de “notáveis",
de sua escolha, e pediu/ordenou que ela redigisse a Constituição, jurada e
outorgada por ele em 25 de março de 1824.
Golpe da Maioridade.
No começo da década de 1840 o
Brasil achava-se tomado por rebeliões regionais de maior ou menor porte, como a
Revolução Farroupilha no Rio Grande do Sul, que já durava cinco anos e ainda
duraria mais cinco. Os sucessivos governos do Período Regencial não conseguiam
debela-las, engolfados também pelas dissensões entre as facções políticas da
Corte. Por instigação do futuro Partido Liberal, sobretudo, o Senado proclamou
a maioridade de D. Pedro II, então com 14 anos e sete meses de idade. O Segundo
Império duraria até 1889.
Deposição do Gabinete Liberal em 1868
Em 1868 a Guerra do Paraguai se
arrastava. Caxias já era o comandante geral não só das tropas brasileiras, mas
das aliadas. Entretanto, atritou-se crescentemente com os membros do governo,
que pertenciam å chamada Liga Progressista. Pressionou então o Imperador,
exigindo que, para continuar no comando, o gabinete fosse substituído. De fato,
em 16 de julho de 1868 o Imperador dissolveu o gabinete e chamou os
Conservadores ao poder, que eram próximos de Caxias. Eles ficariam no Gabinete
até 1878.
A República.
Em 15 de novembro de 1889 a
República foi proclamada num golpe de estado que deveria ser clássico, com a
tropa formada e a deposição do governo imperial. O movimento era algo confuso,
porque seu líder improvisado, o Marechal Deodoro, era monarquista e amigo
pessoal do Imperador. De início, Deodoro cogitava apenas haver uma troca de
ministério. Entretanto, pressionado pelos republicanos civis, que temiam a
prisão de seu líder, Benjamin Constant, Deodoro decidiu levar a cabo a empreitada,
e proclamou o fim do Império. Surpreendentemente, o Imperador aceitou
pacificamente a situação. Pode-se dizer que ele, na prática, se auto-depôs,
partindo com a família para a Europa e recusando soberanamente a pensão
vitalícia que o novo governo lhe ofereceu. Transformou, assim, o golpe clássico
numa espécie de golpe grisalho. A República proclamada não seria bem uma
república, tornando-se, primeiro, um condomínio de militares e depois um
condomínio das oligarquias, sobretudo a paulista e a mineira.
O governo de Floriano Peixoto.
Em 1891 o Marechal Dedoro mandou
a tropa cercar o Congresso Nacional e fechou-o. Mas dias depois, já agastado
pela constante crise política, renunciou. Dizia a Constituição que neste caso,
antes do governo completar dois anos (os primeiros meses do governo de Deodoro
tinham sido “provisórios”, e ele assumira de fato o governo “definitivo” em
fevereiro de 1891), deveria ser chamada nova eleição. Mas o vice, Floriano
Peixoto, entendeu que isto só se aplicava a governos eleitos diretamente. Como
ele fora eleito indiretamente, decidiu continuar no cargo… E assim aconteceu.
A República Velha
Pode-se considerar o conjunto das
eleições realizadas na República Velha como uma sucessão de golpes brancos,
tamanha era a incidência de fraudes de todos os lados e da pressão exercida
pelos governantes de plantão para se manterem nos respectivos cargos ou fazerem
seus sucessores.
A eleição e posse de Juscelino
Depois da morte dramática e
traumática de Vargas, em 1954, ocorreram novas eleições presidenciais em 1955.
O mineiro Juscelino Kubitschek venceu, mas a UDN, Carlos Lacerda à frente,
deflagrou nova campanha virulenta contra sua posse. Com apoio de alguns
militares, a campanha atingiu seu ápice em novembro de 1955. O vice-presidente
Café Filho renunciou, numa manobra para que o novo presidente empossado, Carlos
Luz, que presidia a Câmara dos Deputados, chamasse novas eleições. Era o começo
de mais um golpe branco. Entretanto o ministro da Guerra (hoje se chamaria
ministro do Exército), Marechal Lott, deflagrou um contra-golpe, depondo Carlos
Luz, prendendo Café Filho em sua casa, e empossando Nereu Ramos, 1o.
vice-presidente do Senado como presidente, que garantiu a posse de Juscelino.
O parlamentarismo.
Depois da renúncia de Jânio
Quadros em 1961, os três ministros militares tentaram impedir a posse do vice,
João Goulart. Com o movimento de resistência (a Legalidade) liderado pelo
governador Brizola, o Congresso Brasileiro achounuma saída conciliatória. Num
autêntico golpe branco, votou a adoção do sistema parlamentarista, cerceando os
poderes do presidente. O sistema cairia com o plebiscito de 1963.
As eleições na Nova República.
De fato, pode-se ler a derrota da
emenda das eleições diretas ao final da Ditadura de 64 como um golpe branco. A
partir daí houve uma série de trucagens, sobretudo através da mídia marrom e
golpista, para dirigir o resultado de algumas eleições, sempre com a valiosa
colaboração da Rede Globo e afins. Foi assim quando da eleição de Color, e
também, aí sem sucesso, quando da reeleição de Lula em 2006 e também da
reeleição de Dilma em 2014, pelo menos.
2016
Como se vê, estamos de retorno a
uma velha tradição incrustada no conservadorismo à brasileira, que não suporta
políticas nem soberania populares por muito tempo. Desta vez, há uma
dificuldade no caminho dos golpistas. De antemão, graças ao concurso das redes,
eles estão perdendo desde já a narrativa do golpe, pois o golpe está sendo
chamado pelo seu nome: golpe. Isto significa que sua consumação vai exigir,
pelo menos, a tentativa de silenciar esta certidão de nascimento que está sendo
democraticamente outorgada desde já ao golpe e aos golpistas. Ou seja, vem aí
alguma forma, ou algumas formas de repressão sobre a liberdade de expressão nas
redes e fora delas. Qual será o seu sucesso ou insucesso, veremos.
Fonte: Carta Maior
Flavio Aguiar, de Berlim
Créditos da foto: Aroeira
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