2015 . Ano 12 . Edição 85 - 20/01/2016
Jessé Souza
Desde abril de 2015, Jessé Souza, professor de Ciência Política na Universidade Federal Fluminense (UFF), preside o Ipea. Seus trabalhos sobre estratificação social se tornaram referência acadêmica. Eles desfazem o mito da existência de uma “nova classe média” brasileira, conceito repetido até pouco tempo atrás. Para ele, “o que há é a velha classe trabalhadora, que teve acesso maior ao consumo, sem mudanças significativas em sua inserção social”, diz. E classifica esses brasileiros em agrupamentos como ralé e batalhadores.
Jessé busca consolidar o Ipea como celeiro de pesquisas variadas e plurais e como gerador de projetos interdisciplinares que ajudem na compreensão global da sociedade brasileira. Nesta entrevista, ele toca nesses assuntos e avalia que desigualdade social não é apenas fenômeno econômico. “Há toda uma série de questões simbólicas e culturais em jogo nas classes sociais em nosso país”.
Gilberto Maringoni
Desenvolvimento – O senhor é uma referência na área de pesquisa social no Brasil e possui carreira acadêmica consolidada. Com que expectativa e com que projeto chega ao Ipea?
Jessé – Essa vinda tem a ver com a minha carreira de pesquisador. Eu havia feito uma investigação – entre 2008 e 2010 – que serviu como uma primeira contraposição à noção de nova classe média. Resultou no livro Batalhadores brasileiros: nova classe média ou nova classe trabalhadora?. Foi um trabalho interessante por várias razões. Ele permitiu que agente depurasse tudo o que havíamos examinado sobre a ralé, a partir de um estudo anterior sobre os excluídos, a classe mais importante entre nós, e que dá singularidade ao Brasil. Nossos problemas econômicos e sociais, em alguma medida, têm a ver com essa classe e com o fato de serviços públicos, como segurança, educação e saúde, serem de má qualidade para os pobres. O fato é: esta não é uma classe condenada para sempre. Politicamente, é importante a gente perceber isto.
Desenvolvimento – Mas não houve uma mudança, nos últimos anos?
Jessé – O que está em jogo é a construção de uma nova classe trabalhadora precária para o capitalismo financeiro. É fenômeno mundial e não apenas nacional. É assim na China, Tailândia, Turquia, Índia etc. Ocorre em todos os países de grande contingente populacional, com gente disposta a fazer quase tudo por muito pouco. Essa é a grande característica dessa classe.
Desenvolvimento – Por que o termo ralé?
Jessé – Sabe por que eu comecei a usar esse conceito? Porque meus colegas começaram a dizer que era um negócio horrível, que eu deveria chamar de pobre. Pensei assim: se tem uma palavra que incomoda, é porque tem um pouco de verdade nela.
Desenvolvimento – Como foi realizada a pesquisa?
Jessé – Essa noção de nova classe média é ilusória, por eliminar todos os dados de privilégio de nascimento que estão envolvidos no pertencimento à classe média. Os pobres não têm privilégios de nascimento. Aliás, não têm nenhum. Nosso livro foi somente uma primeira aproximação do problema. Está acontecendo aqui o principal fato econômico, político e social do Brasil dos últimos cinquenta anos. Está se criando um movimento de massa entre nós. Não houve, nos últimos anos, só estímulo econômico, houve estímulo religioso, que foi extremamente importante. Não à toa, dois ou três milhões de brasileiros pobres se tornam evangélicos a cada ano. Esse era um espaço que me interessou bastante estudar e qualificar. Enviamos gente para o Brasil todo. Foram 20 pesquisadores, no total. Isso me deu dados muito distintos daqueles que estavam sendo veiculados pela imprensa. O cotidiano dessas pessoas é constituído pela combinação de penúria e trabalho. Algumas delas trabalham 14, 15 horas por dia, inclusive nos finais de semana, estudando à noite etc. Batalhadores. Desenvolvem um extraordinário esforço de ascensão social, de sair da miséria. Isso me tocou e eu passei a achar que a grande questão brasileira envolvia a compreensão dessa classe e suas consequências econômicas, políticas e sociais.
Desenvolvimento – Isso tem a ver com aquilo que chamam de precariado, no lugar de proletariado?
Jessé – Eu não gosto desse nome, precariado, porque vem de uma associação com um fenômeno europeu. O precário se forma a partir da quebra das condições da classe trabalhadora clássica, industrial, que vem do compromisso social‑democrata. Quem sai disso aí passa a ter relações precárias e passa a se chamar precariado. Não gosto deste conceito do Guy Standing [economista inglês, que estuda mundo do trabalho], por não ser um conceito de classe que pega o aspecto simbólico da classe que, para mim, é o essencial. O aspecto econômico é uma decorrência de aspectos morais simbólicos, emocionais. O precariado é mais uma daquelas importações ad hoc que você precisa transformar, aqui, em uma situação totalmente distinta. Essa situação do capitalismo mundial é completamente nova. Ela não existia no capitalismo competitivo do tempo de Marx. Não se pode falar em exército de reserva [parcela dos trabalhadores estruturalmente desempregada, cuja função é reduzir pressões salariais de quem está na ativa], por exemplo, para essa ralé. Ela não vai para o processo produtivo em época de grande produtividade, como aconteceu no Brasil. Havia pleno emprego e a gente teve que importar mão de obra, em 2009 e 2010. No caso brasileiro e de outros países periféricos, a situação é outra. É uma classe trabalhadora que estava fora do mercado inclusive, que obtém vínculo formal. Por isso acho que não se deve usar o mesmo nome.
Desenvolvimento – Tivemos que importar engenheiros e alguns quadros técnicos. Não era tanto na base da sociedade.
Jessé – É verdade. Trabalhadores técnicos, qualificados, mas no nível da classe trabalhadora.
Desenvolvimento – E onde entramos com a questão da nova classe média?
Jessé – A classe média é privilegiada. Quando se usa a palavra classe, a noção principal é de que há uma luta. Embora eu não veja como o marxismo vê, concordo que o ponto para compreender nossa sociedade é perceber que há uma luta de classes. Todas as mentiras que existem, sejam científicas, ou do senso comum da grande imprensa, têm a ver com luta de classes. A atual crise brasileira e essa contraposição entre mercado e Estado têm a ver com o quê? Têm a ver com um mecanismo de encobrir a luta de classes. O que é luta de classes? É a apropriação monopolizada ou oligopolizada dos recursos escassos. Os recursos não são apenas materiais, como normalmente a gente pensa. Recursos como charme, beleza, prestígio, conhecimento, autoconfiança são atributos que alguns têm, outros não. Algumas camadas da sociedade têm acesso privilegiado a isso. Têm todo o poder político, de financiamento, via eleições. E o mais importante de todos, eu acho, o atributo da informação.
Desenvolvimento – Como o senhor vê a questão da meritocracia?
Jessé – A meritocracia é a grande farsa, a grande justificativa moral do capitalismo. As pessoas veem o capitalismo como se fosse um sistema de trocas econômicas. O capitalismo não diz somente o seguinte: “eu sou a forma mais eficiente de se produzir bens”. Ele diz também: “eu sou a sociedade mais justa”. Essa é sua dimensão simbólica. Não estou dizendo nada nas nuvens. Estou falando de algo que gera humilhação, degradação, depressão, doenças e morte para quem está abaixo de uma linha invisível de distinção social. A meritocracia é uma mentira moral porque ela faz crer que a sociedade é composta de indivíduos. Como se fosse uma trajetória individual, enquanto é possível provar que todo mérito individual é socialmente construído. Ele é fruto de reprodução de privilégios, de injustiças que são construídas historicamente, além do tempo. Tem a ver com reprodução de injustiça, portanto.
Desenvolvimento – Como isso acontece na vida cotidiana?
Jessé – Volta e meia a mídia propaga questões de bom gosto. Um vinho cuja garrafa custa R$ 20 mil, por exemplo, prova que seu consumidor tem bom gosto. Não se coloca em questão quem na sociedade pode pagar esse preço por um vinho. O decisivo aqui é mostrar que a pessoa tem bom gosto, que nenhum dos supostos imbecis que gostam de cerveja barata tem. A noção que está posta aí – e que não é percebida – é de homem sensível. É a obra de Pierre Bourdieu [1930‑2002, sociólogo francês], que evidenciou isso. Ele mostrou como as regras de distinção se assentam sobre a assimetria subjacente à sociedade francesa, que dizia ter vencido a desigualdade. Propagava‑se que la république française fora montada na escola pública para todos. O que Bourdieu disse? Uma ova. Isso é reproduzido de outras formas, que vão além do nível econômico. É isso que tentamos esmiuçar no estudo sobre os batalhadores e sobre a ralé.
Desenvolvimento – Voltemos à sua vinda para o Ipea.
Jessé – O Ipea é uma instituição de pesquisa aplicada e a crise fiscal entra cobrando urgências. A gente foi logo obrigado a montar o que chamamos de agenda estratégica. E aí desenvolvemos estudos em várias áreas e unimos à capacidade do Ipea para cumprir essa agenda.
Desenvolvimento – O senhor propõe uma pesquisa mais ampla sobre esses temas?
Jessé – Temos de fazer uma investigação qualitativa em várias áreas. O que você vai ouvir de uma pessoa não é a verdade sobre ela. É a legitimação dela. Essa é a necessidade. Mas você pode fazer uma pesquisa que poderia chamar de hermenêutica. Ou seja, sabendo disso, ao mesmo tempo em que só ela pode dizer quem ela é, você pode dispor de técnicas para acessar isso. O principal é: que tipo de disposições essa pessoa tem? Pertencimento familiar vai dizer se ela vai ser ou não ser bem‑sucedida na escola, sua propensão ao pensamento abstrato, ligado sempre a situações concretas. Ao invés de ser estimuladapela fantasia, estará no carrinho de mão do pai, que é pedreiro. Vai ser montada para ser um trabalhador manual. Isso é extremamente importante. Não é um número. Os seres humanos são montados assim. Se a pessoa tem ou não estímulo para ter capacidade de concentração. Capacidade de concentração, alguém da classe média com cinco anos tem. As condições de vida de quem é muito pobre muitas vezes não permitem que se adquira isso.
Desenvolvimento – Essa é uma agenda para o Ipea?
Jessé – Sim. Nós montamos esta pesquisa, que nós chamamos de Radiografia do Brasil Moderno, com duas dimensões. Uma tem a ver, no fundo, com o conhecimento de todas as classes. Nossa ideia era ter um apanhado geral para depois fazermos o que vai magnificamente se casar com o que o Ministério do Planejamento está fazendo. A ideia é tornar o Ipea uma instituição para avaliar as políticas públicas mais importantes do governo, junto ao Ministério do Planejamento. E o Ipea tem uma enorme base de dados quantitativos. Vamos usar esse conhecimento para que a gente possa utilizar tanto dados qualitativos quanto quantitativos desta pesquisa no acompanhamento de políticas públicas para melhorar sua eficiência. Você só pode ter eficácia institucional se você conhecer seu público.
Desenvolvimento – Que áreas do conhecimento essa pesquisa, de caráter interdisciplinar, envolve?
Jessé – Economia, sociologia, cultura, ciência política, psicologia, pedagogia, direito etc. Não consigo prever uma área das ciências humanas em que ela não esteja presente. Tem outra ponta desse projeto que é uma radiografia das instituições. Por exemplo, a instituição das agências de controle. A gente quer ter um primeiro olhar sobre essas instituições. Como podemos melhorar a gestão? Como essas instituições se comportam no jogo político?
Desenvolvimento – O Ipea tem cinco diretorias. Cada uma delas tem suas pesquisas autônomas. Como a agenda que o senhor propõe se articula com sua estrutura?
Jessé – A gente tem de evitar uma feudalização na instituição, com cada diretoria seguindo uma diretriz própria. Tem de haver um plano conjunto, com as pesquisas específicas de cada uma das diretorias. Os técnicos qualificados do Ipea só são quem são pela possibilidade de realizarem pesquisas aprofundadas, de longo prazo. Não se monta nenhum think tank sem disso. É preciso, de algum modo, dialogar com essas duas necessidades, um projeto geral e as demandas específicas. As dinâmicas das diretorias devem estar inseridas em um projeto comum.
Desenvolvimento – Falemos de seu último livro, A tolice da inteligência brasileira. Trata‑se de uma polêmica no terreno da cultura e das ciências sociais. O que é esse trabalho, exatamente?
Jessé – A ciência política sempre foi uma trincheira política. Max Weber (1864‑1920), autor extremamente político, nos deixou uma grande lição, a de que as ideias constroem o mundo. Claro, elas não constroem a seu bel‑prazer, precisam estar ligadas a interesses poderosos. As pessoas acham que o que constrói o mundo é o dinheiro. Eu não acho isso. O dinheiro, em si, não tem nenhum poder. Eu aprendi que as ideias é que montam o mundo, que os seres humanos não são só produtores de mercadorias, como dizia Marx, mas eles são seres que se autointerpretam. Precisam, para qualquer coisa, mesmo que seja produzir mercadoria, de uma interpretação do que estão fazendo.
Desenvolvimento – E isso se aplica ao Brasil?
Jessé – Claro! A pergunta aqui é: como o Brasil chegou a ser uma das sociedades mais perversas, desiguais e absurdas do planeta? Eu olho para o país com olhos assustados. A realidade cada dia triplica este efeito. Eu quero mostrar como esta mentira, esta violência simbólica, dizendo em termos técnicos, foi construída, de tal modo que ela agora ganhou corações e mentes de todos os brasileiros. Para mim, isso tem uma significação política óbvia.
Desenvolvimento – O senhor critica, no livro, alguns autores importantes das ciências sociais. Por favor, comente um pouco sobre isso.
Jessé – Na minha formação intelectual, desde jovem, comecei a estudar grandes pensadores de forma sistemática. Em seguida, li os brasileiros. Gilberto Freyre [1900‑87], apesar de muito conservador, me despertou viva admiração. O mesmo se deu com Florestan Fernandes [1920‑85]. Ele foi o único a superar o paradigma de perceber que o capitalismo não é apenas troca de mercadorias e fluxo de capitais. Tem um componente simbólico e uma forma de classificar as pessoas. Caio Prado Jr. (1907‑90) é outra referência notável e eu o colocaria até como fundador de um tipo de interpretação do Brasil. Celso Furtado (1920‑2004) é outro pensador decisivo. Mas a maior parte do que li achei muito inconsistente. Por exemplo, Raimundo Faoro [1925‑2003] é de uma fragilidade risível, assim como Sérgio Buarque [1902‑82] e Fernando Henrique Cardoso. Sempre me perguntei: como adquiriram respeitabilidade?
Desenvolvimento – Esses intelectuais são canônicos e estão consolidados na academia. Que tipos de ataque o senhor tem sofrido por força disso?
Jessé – Minha vida inteira na universidade foi uma luta para sobreviver. Eu já sofri todo tipo de ataque que você possa imaginar. A única estratégia de você montar uma vida que vai ser contra os cânones é uma estratégia de longo prazo.
Desenvolvimento – Devem existir críticas como “Quem é o senhor para criticar Sérgio Buarque”?
Jessé – Claro. Eu sou um ser humano com as mesmas capacidades físicas e intelectuais de qualquer outro. E meus argumentos em relação a isso são produto de uma vida. E as ideias estão aí para serem contrapostas. Eu penso que o Brasil obedece a esquemas de classificação muito semelhantes aos da Alemanha, da França etc. Eu fiz uma pesquisa empírica para mostrar isso. Avalio que, por conta disso, faço uma interpretação nova e ousada. Em minha visão, estou aí para receber as críticas que vierem
Fonte: Site do IPEA de 24/02/2016 |
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quarta-feira, janeiro 27, 2016
A noção de nova classe média é ilusória
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