A médica Adriana Melo tem 45 anos e trabalha há 16 no setor de
medicina fetal do Isea, a principal maternidade pública de Campina Grande.
Entre outubro e novembro do ano passado, compartilhou a angústia de duas
pacientes grávidas de bebês que nasceriam com microcefalia. A ela a medicina
deve o estabelecimento da relação entre o vírus zika e a má formação do cérebro
de milhares de crianças. Não é pouca coisa, nem foi fácil.
Desde agosto, médicos do Nordeste quebravam a cabeça para saber o
que estava acontecendo, e a rede pública de Pernambuco alertou para a suspeita
da conexão entre o vírus e a anomalia nos bebês. Adriana Melo suspeitou que se
estava diante de um novo padrão de microcefalia: “Eu nunca tinha visto casos de
destruição do cérebro dos fetos com tamanha virulência”.
Havia uma pista: todas as pacientes tiveram manchas vermelhas na pele
e coceiras durante as primeiras semanas da gravidez. Quando a doutora Adriana
começou sua caminhada, havia no mundo apenas a suspeita da relação entre casos
de microcefalia e o zika. O vírus se tornara epidêmico na Polinésia em 2014. No
Brasil, sabia-se apenas que o número de bebês que nasciam com essa anomalia
vinha aumentando, sobretudo no Nordeste. O zika era visto ainda como uma
modalidade branda de dengue.
O governo da Paraíba custeou a viagem das duas mulheres para serem
examinadas em São Paulo, e em novembro, por iniciativa de Adriana Melo, a
Fiocruz recebeu material colhido nas pacientes. Em poucos dias, bateu o
martelo. Duas semanas depois, o Ministério da Saúde decretou uma emergência
sanitária. Haviam-se passado três meses desde o aparecimento das primeiras
suspeitas.
O sistema de vigilância epidemiológica nacional dormiu no ponto.
Nada de novo. Quando Oswaldo Cruz, baseado em pesquisas americanas feitas em
Cuba, quis combater a febre amarela atacando o Aedes aegypti, a burocracia da
Saúde e alguns marqueses da medicina duvidaram dele. A febre era coisa do
clima, logo, culpa do Padre Eterno. No caso da doutora Adriana Melo sucedia
algo semelhante. Ela dizia algo novo, o zika tinha relação com casos de
microcefalia, portanto o problema estaria no maldito do mosquito, nada a ver
com a alimentação da mãe ou até mesmo com consumo de drogas.
Apesar da tonitruância da decretação de emergência (sem que se
saiba o que isso significa na vida real), o Ministério da Saúde procura
tranquilizar a população: nem todas as mulheres que tiveram zika terão bebês
microcéfalos, assim como nem todos os Aedes aegypti que andam por aí transmitem
zika. Tudo bem, mas em 2014 o Brasil teve 147 casos de microcefalia. Admita-se
que esse número esteja contaminado por uma subnotificação, Fique-se com o
dobro, seriam 294. Em apenas quatro meses, os casos suspeitos já chegaram a
3.893. Segundo a Fiocruz, os registros poderão chegar a 16 mil neste ano. A
última desgraça envolvendo mulheres grávidas deu-se no século passado, quando
gestantes que tomaram o remédio talidomida pariram bebês defeituosos. Em todo o
mundo, afetou 10 mil nascituros num período de cerca de cinco anos.
Dentro do Plano Nacional de Enfrentamento à Microcefalia, o
Ministério da Saúde baixou uma Diretriz para Estimulação Precoce para crianças
que nascem com microcefalia. Ele relaciona-se com o Plano Viver Sem Limite e
com a Rede de Cuidados à Pessoa com Deficiência, que por sua vez são
contemporâneos do Programa de Aceleração do Crescimento. Fica combinado assim.
A doutora Adriana tem doutorado pela Unicamp, seu salário é de R$
3.800 mensais por 20 horas de trabalho semanais. Com bonificações de
produtividade pode chegar a R$ 6 mil. Mantém uma clínica privada onde ganha
mais trabalhando menos. A maternidade do Isea só atende pelo SUS (sem segunda
porta), e na equipe de medicina fetal há quatro médicos. Desde que ela saiu por
aí para confirmar a relação entre o zika e a microcefalia, recebeu críticas,
muxoxos e silêncios. Ajuda, só da prefeitura da cidade e do fabricante de
equipamentos Samsung, que doou um aparelho de ultrassonografia à maternidade. A
rede pública de Campina Grande (680 mil habitantes) não tem máquina de
ressonância magnética. Quando lhe perguntam o que precisa para facilitar seu
serviço no Isea, responde: “Recursos para pesquisas”.
*Elio Gaspari – site: O Globo em 24/02/2016
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